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Lutar em prol da visibilidade implica em resguardar direitos básicos como, por exemplo, o direito à saúde/Pixabay
Lutar em prol da visibilidade implica em resguardar direitos básicos como, por exemplo, o direito à saúde/Pixabay
Dar visibilidade à causa lésbica garante a representação da comunidade em todos os espaços, após anos de apagamento e violência.
Fecha de publicación: 29/08/2021

Visibilidade é o atributo do que é ou pode ser visível, ser percebido pelo sentido da vista. Lésbica, mulher homossexual. Visibilidade lésbica, duas palavras que, separadas, são de fácil compreensão, mas, juntas, causam estranheza. Dia 29 de agosto é o dia da visibilidade lésbica e a cada ano, desde a sua criação, em 1996, são publicados textos e mais textos explicando o porquê da existência dessa data, mas a razão de ser já reside na própria necessidade de explicação.

A imposição do discurso patriarcal e heteronormativo nos apaga por duas vertentes. Ora, se para o patriarcado a mulher se encontra em um local de sub-representação, aquela que também não atende ao padrão da heteronormatividade se encontra em um local ainda mais inferior. Essas são as escalas dos espaços de poder, em que o topo é ocupado majoritariamente por homens a partir da opressão de mulheres silenciadas pela história.


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Veja-se que a norma patriarcal não somente promove a visibilidade e ascensão do masculino, como também renega o importante papel do feminino neste registro e vai além: obscurece também a experiência afetivo-sexual que dispensa a presença masculina. Esse apagamento tem consequências, diante da percepção de que o que não é visto tem sua existência abalada. Ou melhor: até existe, mas para quem?

Afirmarmo-nos nesse caminho implica em uma mudança de paradigma que caminha a passos extremamente lentos, e lutar em prol dessa visibilidade implica em resguardar direitos básicos como, por exemplo, o direito à saúde. Não é incomum presenciar a dificuldade de acesso de mulheres lésbicas aos serviços ginecológicos, seja pela pouca informação que finda por gerar negação da necessidade de cuidados específicos para essa comunidade, ou, até mesmo, e em maior grau, pela lesbofobia dos médicos e médicas que, em sua maioria, seguem a heteronormatividade institucionalizada, gerando constrangimento às pacientes que se relacionam com outras mulheres.

Essas dificuldades se agravam ainda mais para as classes economicamente mais baixas, para mulheres exclusivamente homossexuais e para aquelas que possuem estereótipos masculinizados. Nesse meio, subjetivamente e de maneira intrínseca, assumir-se lésbica impacta diretamente na forma como somos tratadas, principalmente quando não se é reproduzida a feminilidade.

O ambiente profissional, como microcosmo da sociedade, também exige um padrão de performance de feminilidade a ser seguido. Esse padrão finda por gerar pequenas violências simbólicas, como categorizar de desleixada ou malvestida a mulher que prefere não se maquiar ou usar salto alto, e parte para um local de desumanização, como, por exemplo, o caso da mulher lésbica que foi impedida de utilizar o banheiro feminino em seu ambiente de trabalho, por não performar feminilidade. O caso somente foi resolvido após longos e dolorosos cinco meses de impedimento, quando a auxiliar de limpeza Thais Cyriaco conseguiu na Justiça uma liminar em seu favor.

A invisibilidade é cúmplice da violência. Um levantamento realizado em 2017, pela revista eletrônica Gênero e Número, constatou que, naquele ano, a cada 24 horas, 6 mulheres lésbicas foram violentadas sexualmente com intuito “corretor”, isso é, quando o agressor violenta a mulher exclusivamente por ela ser lésbica, com a suposta intenção de “corrigir” a sua sexualidade. O levantamento apurou que a própria motivação sofre apagamento nos dados de violência sexual e da própria Lei Maria da Penha. É como se o motivo não existisse ou não fosse levado em consideração.

Por tudo isso, dar visibilidade à causa lésbica é um processo humanizador. É garantir a representação da comunidade em todos os espaços, após anos de apagamento e violência. É descentralizar a discussão sobre homossexualidade, focada apenas no homem, prática comum no seio da sociedade. É imperativo que se entenda que existe diversidade dentro da diversidade, e não podemos reduzir a discussão da homossexualidade ao homem gay, branco e cisgênero, pressuposto da criação da antiga sigla GLS, que evoluiu para GLBT na década de 1990 e, apenas em 2008, na 1ª Conferência Nacional GLBT, realizada em Brasília, foi alterada para LGBT, com o intuito de garantir maior visibilidade para as lésbicas (o L da sigla).

Anualmente, no dia 28 de junho, a rebelião de Stonewall é lembrada e comemorada como um marco da luta pelos diretos LGBTQIA+. De fato, não há nenhuma dúvida sobre a importância desse momento histórico para a causa. Todavia, veja-se que pouco ou quase nada se comenta sobre Stormé DeLarverie e outras mulheres lésbicas que protagonizaram a rebelião. Possivelmente, Stormé foi a primeira a incitar a população a se rebelar contra a violência policial arbitrária instaurada no local. Os próprios registros da época são poucos em relação ela, o que reforça o seu apagamento histórico.


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Hoje, dia da visibilidade lésbica, é um momento que nos remete aos processos de construção de nossa própria identidade, é um momento para fazer-se ecoar o grito da nossa existência. A reflexão que se pretende provocar não é apenas um pedido, é uma imposição, que nos resguarda e alimenta a nossa esperança de que dias melhores serão possíveis. Hoje, o dia é de Stormé DeLarverie, e de todas nós que, apesar de construirmos com protagonismo a história, somos relegadas a coadjuvantes. Basta!

*Nara Leandro Cavalcanti é advogada do Serur Advogados.

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