“O lugar do direito não era o lugar da pessoa negra” 

“A pessoa negra não tem acesso às vagas nos cursos mais renomados ou não tem o mesmo acesso que pessoas brancas. Existe um gap de formação” /Divulgação
“A pessoa negra não tem acesso às vagas nos cursos mais renomados ou não tem o mesmo acesso que pessoas brancas. Existe um gap de formação” /Divulgação
Leopoldo Soares fala sobre discriminação no mercado jurídico e aumento da representatividade.
Fecha de publicación: 25/11/2021

Ele é um dos poucos coordenadores negros de cursos de direito no país. O professor Leopoldo Soares ocupa o posto mais alto na Faculdade de Direito no campus de Campinas da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Uma responsabilidade que veio depois de uma trajetória relevante dentro e fora do país. O advogado é pesquisador associado do Ius Gentium Conimbrigae (Centro de Direitos Humanos), sediado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Aqui no Brasil ele também é vice-presidente do Instituto Nacional de Pesquisa e Promoção de Direitos Humanos e tem pesquisas relevantes sobre as comunidades quilombolas brasileiras. 


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O advogado é formado em direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), mestre em Direitos Coletivos e Função Social do Direito pela Universidade de Ribeirão Preto e doutor em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). 

Numa conversa a LexLatin, o professor falou sobre a situação dos estudantes negros em faculdades de direito e no mercado jurídico. E avaliou como anda o racismo na indústria legal em 2021. Confira.

Qual é hoje o espaço da pessoa negra no mercado jurídico brasileiro?

LS: É um espaço muito reduzido, a começar pelo número de estudantes negros na universidade. A universidade forma poucas pessoas negras e isso se reflete no mercado de trabalho. A maioria das pessoas negras que conseguem se formar não têm muita inserção nos grandes escritórios de advocacia e nos concursos públicos mais importantes. Então, o profissional do direito negro é aquele que vai trabalhar ou no seu próprio escritório ou de forma autônoma, ou em escritórios pequenos.

O que falta para ter essa inserção? É um preconceito velado? Os grandes escritórios, por exemplo, têm menos espaço? O que ocasiona essa pouca inserção nesses lugares?

LS: Existe um preconceito. Essas pessoas não competem em grau de igualdade com pessoas brancas. Existe esse estigma que faz com que haja uma barreira. Existe também uma questão de autoestima. A pessoa negra passa por experiências na universidade que são de discriminação e isso vai minando a autoestima dessas pessoas, de forma que elas, por vezes, não se sentem seguras para buscar vagas em grandes escritórios. É quase um círculo vicioso em que você tem um problema na alimentação do mercado e um problema também do mercado para absorver essas pessoas.

Quando você vai para o concurso público, isso também acontece. Tem uma fase de seleção que é objetiva, existem menos pessoas negras disputando essas vagas porque existem menos pessoas negras que se formam no curso de direito. Mas também tem o problema das fases mais avançadas, cuja análise é uma entrevista, uma prova oral, em que tem um filtro que acaba barrando muita gente. 

Essa competição nas seleções com pessoas que vieram de boas universidades públicas, que falam várias línguas, como você analisa?

LS: Existe um gap de formação, porque existe um gap na alimentação da universidade. A pessoa negra não tem acesso às vagas nos cursos mais renomados ou não tem o mesmo acesso que pessoas brancas. Então, de fato, existe um gap de formação. Os escritórios estão dispostos a superar esses gaps contribuindo para essa participação?

Aqui no Mackenzie participamos de um programa chamado "Incluir Direito”, que subverte essa lógica. É um conjunto de escritórios que reconhece que existe esse gap, que além dele existe um problema de autoestima e, às vezes, os estudantes negros não procuram esses escritórios pelo receio de passarem por situações de discriminação.

E aí tem todo um projeto de mentoria, de estudo de línguas, para que esses estudantes possam superar esses gargalos e entrar nesses grandes escritórios. E quando eu falo em entrar nos grandes escritórios não significa que eles estejam concorrendo em pé de igualdade com pessoas não negras. Significa que os escritórios estão criando vagas específicas para que essas pessoas, uma vez dentro do escritório, possam desenvolver uma atividade e aprender de forma que desenvolvam suas potencialidades e que, em dado momento, esse gap seja superado.

Falando de formação, a política de cotas para negros nas universidades surtiu algum efeito? Ela trouxe algum benefício para a população negra? Qual foi, em relação à carreira jurídica, por exemplo?

LS: Surtiu efeito porque existe um número maior de pessoas negras na universidade. Então, uma parte do problema começa a ser resolvida. Quando você tem um número maior de pessoas negras na universidade, inclusive nos cursos de Direito, você tem a possibilidade dessa pessoa se reconhecer em um ambiente mais amigável. É diferente quando um curso tem 50 alunos e uma pessoa negra: essa pessoa negra não tem referência nenhuma.

Mas isso me parece que ainda não se refletiu na ocupação das vagas mais relevantes do mercado de trabalho nem na magistratura, no Ministério Público nem nos grandes escritórios - ainda que os concursos públicos também tenham cotas. Acho que esse é um segundo ponto.

Leopoldo Soares

Você vê um número maior de pessoas negras no ambiente do Fórum, nesses ambientes em que antes essas pessoas eram estranhas ou eram réus ou funcionários.

Eu tenho uma experiência muito interessante, eu não atuo na área criminal, mas quando advogava, há alguns anos, fui fazer uma audiência representando um colega, e era uma audiência criminal, de um roubo. Tinham quatro réus, desses quatro réus, um era negro e três eram brancos. A vítima entrou na sala como testemunha e o juiz perguntou: "quem você reconhece que estava armado?". E essa pessoa respondeu: "foi aquele indivíduo de cor".


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E quando ele falou isso, o outro advogado que também era negro virou e falou assim: "Excelência, por questão de ordem, eu não estou vendo ninguém transparente, todo mundo aqui tem cor". A cor, especificamente a cor negra, é um símbolo pejorativo de identificação do sujeito criminoso. O negro frequentava o Fórum algemado e de roupa laranja.

Você é coordenador de um curso de uma universidade particular que tem intelectuais muito relevantes, como o Silvio Almeida e o Adilson Moreira, e que falam dessa questão do lugar do negro na sociedade brasileira. Que espaço é esse que você ocupa hoje e como você vê outras pessoas ocupando espaços parecidos com o seu?

LS: Quando eu falo de ter cinquenta alunos e uma pessoa negra, esse foi o meu caso na universidade. Na verdade, na minha turma eram duas pessoas negras. Era uma universidade pública. Tinha o curso de serviço social que tinha uma grande maioria de pessoas negras, sobretudo mulheres. Tinha o curso de história em que você tinha um número significativo de pessoas negras e tinha o curso de direito em que, a minha turma que tinham três negros, dois de manhã e um a noite, era uma coisa excepcional. Então, a minha referência no direito sempre foi uma referência da pessoa negra como uma pessoa estranha. O lugar do direito não era o lugar da pessoa negra. 

E aí é quase uma crueldade. O meu pai, que é uma pessoa negra e não teve estudo na vida - e sofreu demais por isso - sempre me disse, desde criança, aquilo que todo pai negro fala para o filho negro: que você tem que ser muito bom naquilo que você faz, muito provavelmente o melhor naquilo que você faz para você ter alguma possibilidade de te reconhecerem pelo seu mérito.

De fato, eu só fui ter espaço no ambiente acadêmico depois que eu comecei a frequentar espaços importantes no direito. Então, a minha formação na Unesp foi importante, claro, depois eu fui fazer o meu doutorado na Faculdade de Direito da USP e me tornei pesquisador associado da Universidade de Coimbra.

Depois que eu tive ida e vindas à Coimbra, já faz oito anos que vou à Coimbra todos os anos como pesquisador da Faculdade de Direito, acho que as pessoas me respeitam hoje por conta desse patamar. Eu percebo que o tratamento que as pessoas dispensam é diferente, a partir do momento em que eu trago o meu currículo, a minha referência e também porque ocupo espaço de poder dentro da universidade. Ser professor na universidade já é um espaço de poder, mas é um espaço de poder em que a pessoa negra é minoria, e quando você vai para a coordenação do curso, você potencializa o espaço de poder. 

Então, hoje, o meu lugar de fala, o meu ponto de vista enquanto coordenador do curso, é aquele do qual eu não percebo situações corriqueiras de discriminação em relação a mim. Eu atuo como coordenador e eu não vejo resistência a isso pelo fato de eu ser negro. Mas é porque eu estou em um espaço de poder e com algumas credenciais que talvez façam com que as pessoas respeitem a minha condição.


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Mas eu tenho a consciência de que se ser professor negro já é uma exceção, ser coordenador de curso, e de um curso de uma universidade importante como é o Mackenzie, é mais excepcional ainda. Também tenho a consciência de que o estudante que está frequentando a universidade hoje, especialmente o estudante negro, percebe isso e é um motivo de acolhimento, mesmo que eu nunca dirija uma palavra a essa pessoa. Isso já é uma circunstância de pertencimento.

O que me parece ser meu papel nessa condição é fazer com que o ambiente da universidade seja mais acolhedor. E ser um ambiente mais acolhedor significa trazer cada vez mais pessoas vulnerabilizadas, não só pessoas negras, e fazer com que o curso tenha uma expressão que dê para elas alguma segurança e alguma possibilidade de reconhecimento. 

Nós estamos alterando o projeto pedagógico do curso. A partir do primeiro semestre do ano que vem vamos iniciar um novo projeto pedagógico, uma matriz curricular nova. Colocamos na grade uma disciplina de direito antidiscriminatório. Por que? Porque os estudantes vão estudar na grande curricular, do ponto de vista jurídico, o que é a discriminação e quais são os instrumentos de antidiscriminação para avançar na discussão do que é igualdade.

Isso me parece uma medida de extrema importância. É preciso trazer para o aspecto teórico jurídico o estudo dessa questão e a partir daí repensar o lugar da pessoa negra na universidade. Infelizmente, não são todos os cursos que têm essa configuração. Acho que a minha experiência de vida fez com que isso se tornasse importante. É lógico que eu não construí o projeto pedagógico sozinho, mas construí com pessoas que tinham também essa sensibilidade. 

O que mudou no mercado jurídico depois do Black Lives Matter?

LSNo mercado jurídico acho que houve mais visibilidade para a pessoa negra. Porém, houve mais visibilidade para a pessoa negra para que ela fale sobre a negritude. As pessoas negras são comumente chamadas a falar sobre a questão racial e de forma mais corriqueira e evidente do que era antes desse movimento do Black Lives Matter. Acho que o próximo passo, o avanço necessário, é que essas pessoas ocupem também os espaços de reverberação de ideias para falar de outros assuntos. Para falar de direito administrativo, de direito do trabalho, de direito civil e direito penal. Acho que esse é o legado que esse movimento ainda não nos trouxe, mas que talvez caminhemos para isso. É o que nós temos no horizonte. Mas houve uma visibilidade maior para o profissional negro e para a pessoa negra.

Quais são as referências para o advogado negro no mundo jurídico?

LSTem uma referência histórica gigantesca que é Luís Gama. É uma representação de uma advocacia refinadíssima e engajada. Quando se fala em advocacia, independentemente da questão racial, Luís Gama já está em um patamar muito elevado e quando você acrescenta o aspecto raça ele ganha uma projeção ainda maior.

Mas quando caminhamos para o presente são poucos os profissionais do direito negros que têm essa visibilidade. Eu não consigo falar da advocacia especificamente do ponto de vista nacional, mas do campo do direito, temos o professor Silvio Almeida, o professor Adilson Moreira, tivemos - há algum tempo - a referência do próprio Joaquim Barbosa.

Regionalmente temos algumas boas referências, mas que não têm essa visibilidade toda. Em Campinas, por exemplo, tem um desembargador do Tribunal Regional do Trabalho que é negro, o professor Lourival. Ele já foi professor da universidade, é professor emérito do Mackenzie hoje, chegou a ser presidente do TRT, já foi indicado para o TST.

A pessoa negra se acostumou, ao longo do tempo, a buscar o valor não naquelas pessoas que são ícones - é claro que os ícones também têm seu valor -, mas nas pessoas comuns do dia a dia. Até porque existe um perigo muito grande quando você toma como exemplo uma pessoa negra muito bem sucedida,  porque isso pode se tornar um discurso de que o racismo não existe.

É aquela coisa: se existisse racismo, nós não teríamos tido um ministro do STF negro. Se existisse, nós não teríamos um professor de expressão negro. Então, esse é o perigo desse discurso de a gente pegar essas referências nacionais em detrimento de referências do dia a dia. Quando você vai ao Fórum, você vê ali profissionais negros, advogados negros, que estão nas suas atuações diárias e que servem como referência daquele que, pelo fato de estar ali, já é um grande valor. Aquele advogado que você olha do lado e vê o esforço que ele faz para estar ali, para advogar, para fazer bem feito o que ele faz, são pessoas de grande valor. 

Para finalizar, o que você diria para jovens negros, advogados negros, que sonham em fazer parte de um grande escritório ou que sonham com esse momento futuro de equidade no mercado jurídico?

LSEu diria para conhecerem a história da pessoa negra, especialmente no Brasil, que passa pela pessoa negra escravizada e pela pessoa negra aquilombada. A nossa vida como profissional do direito não é diferente da vida dessas pessoas no tocante àquilo que nós precisamos fazer, que é buscar não a emancipação de cada um, mas a emancipação do grupo.


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O que eu diria para os jovens negros advogados e no início de carreira é: o negro não vai ser emancipado se ele continuar buscando a sua própria emancipação sem pensar na emancipação dos outros que estão a sua volta. A pessoa negra tem que ter um senso de coletividade e a inserção de um depende da inserção de outros. Acho que esse é um aspecto muito importante. 

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