No plano internacional, o Brasil deve colher os frutos de uma política de isolamento, que vai se acentuar com Biden no poder. É o que prevê Wagner Menezes, professor de direito internacional da Faculdade de Direito da USP.
O resultado dessa “escolha”, segundo Menezes, ficou mais evidente nos últimos dias, com a dificuldade de trazer insumos para a fabricação de vacinas contra a Covid-19. Nossa diplomacia não foi capaz, até agora, de resolver os impasses com China e Índia, países responsáveis pelo fornecimento dos insumos para produção em território brasileiro das vacinas Coronavac e de Oxford.
E essa pode ser apenas a ponta do iceberg nessa história, que inclui ainda a questão ambiental e as declarações polêmicas de Bolsonaro e sua família sobre nosso principal parceiro comercial – de novo a China – que não anda nada contente com a condução das relações diplomáticas.
Uma política considerada por muitos especialistas como desastrosa e que, a partir de hoje, pode ficar ainda pior com Biden, como avalia Menezes. Veja a entrevista a seguir.
O que muda para o governo brasileiro com a saída de Trump e entrada de Biden nos Estados Unidos?
Antes, minha resposta tradicional seria “mudaria muito pouco”, numa perspectiva de atuação tanto num governo republicano quanto democrata. No entanto, especificamente por conta do perfil mais populista de Trump, que tem um discurso de resgate de uma referência a um mundo bipolar e hegemônico por parte do Estados Unidos, muda muito sim.
Muda porque houve uma posição bastante clara de Trump, especialmente a seu eleitor médio, de um rompimento com um conjunto de acordos internacionais e também com um desencadeamento de um processo de disputas hegemônicas. Vou citar dois exemplos: o Tratado do Clima, que é muito importante para a sociedade humana hoje, e o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.
Assistimos a uma nova corrida armamentista e o resultado disso foi que o Irã aproveitou essa brecha - e o discurso de Trump de radicalização da posição de soberania - para reiniciar seu processo de enriquecimento de urânio. Isso coloca em risco o mundo todo. Não vi ainda nenhum tipo de manifestação especificamente sobre este tratado na gestão Biden, mas parece que será mais propositivo, de resgatar as bases de negociação para não proliferação de armas nucleares.
Então existe por conta do perfil do governo de Donald Trump, muito peculiar, uma repercussão no campo do direito internacional e das relações multilaterais.
Leia mais sobre o futuro das relações entre os dois países em: O que muda na relação entre Brasil e EUA com a posse de Joe Biden?
Como fica o Brasil nesse alinhamento?
O governo deve avaliar os riscos em que foi submetido o Estado brasileiro no âmbito das relações internacionais ao se alinhar com Trump. Não houve um alinhamento de Estado, que seria até compreensível, mas com um determinado governo. Isso é péssimo para uma democracia internacional e para uma posição do Brasil.
O Ministério das Relações Exteriores deve ter calculado esse risco, porque é complicado falar na repercussão que o Estado brasileiro teve, porque o governo alimenta claramente um discurso negacionista, de globalismo, de boa fé no sistema multilateral e soberanista do Estado brasileiro.
Tem repercussão porque houve esse alinhamento incondicional. Biden já se manifestou claramente em discordância no plano internacional em relação a posições que estavam sendo tomadas pelo Brasil, orientadas fundamentalmente pelo governo Trump e toda essa aposta do Estado brasileiro na política de alinhamento a Trump, talvez apostando que ele fosse reeleito.
Notem que a eleição do Biden do ponto de vista do direito internacional, das relações internacionais e da diplomacia acaba por fazer com que o Estado brasileiro se isole nas relações internacionais. Quem seria nosso aliado nos dias de hoje? Nós não temos aliados que possamos ter algum tipo de repercussão ou ganho econômico.
Quais são as consequências disso para nossa economia?
No plano internacional, cenário econômico será menos flexível e simpático aos interesses brasileiros. Note que mesmo com o alinhamento incondicional ao governo Trump nós não tivemos esse tipo de preferência.
Quando você tem um distanciamento, as negociações ficam mais duras. Então o cenário para o Estado brasileiro até o fim da gestão Bolsonaro é bastante difícil em termos de negociações comerciais. Isso está acontecendo agora mesmo com os mecanismos para a vacina. Há uma maior dificuldade estrutural e isso tem repercussões econômicas.
O quanto o legado e o nome de Trump, mesmo fora da presidência, continuará a influenciar os americanos, o governo Bolsonaro e os grupos que o apoiam?
Vemos agora uma profunda resistência e reação das instituições democráticas nos EUA - e isso mesmo no seio dos republicanos - em relação ao trumpismo, o que podemos chamar modelo de gestão, que é distante da proposta republicana.
O trumpismo vai naturalmente se enfraquecer. Obviamente que essas ideias sempre existiram e existirão e você tem um espaço de maior expressão e valorização desses discursos totalmente antagônicos. Na essência, o discurso de Trump e a defesa da família é totalmente antagônico e não tem sentido, assim como a defesa dos interesses nacionais.
Ele vai continuar alimentando uma determinada parcela dos eleitores com essa construção ideológica, inclusive aqui no Brasil. Mas eu apostaria num enfraquecimento desse discurso, até porque não tem consistência e depende de muitos fatores econômicos e políticos para que ele possa ter um espaço de confirmação.
Por conta dessa reação das instituições americanas ao trumpismo e porque o Estado brasileiro acaba se isolando muito no cenário internacional, apostaria num enfraquecimento dessa ideia. E acredito num cenário eleitoral nas próximas eleições em 2022 totalmente incerto.
O Sr. que foi consultor das Nações Unidas em direitos humanos e corrupção. O quanto esse novo governo pode mudar a dinâmica global nessas duas áreas, inclusive na América Latina?
Precisamos buscar a nossa própria história, aquilo que o Estado brasileiro e a sociedade acreditam em relação aos direitos humanos. Nosso grande desafio por aqui é consolidar esses valores.
Independente de ser republicano ou democrata, algumas políticas de estado norte-americanas continuarão a ser executadas. Percebemos que toda estratégia é pautada no exercício de poder norte-americano, de forma independente e hegemônica.
Teremos um discurso mais voltado ao reconhecimento aos direitos humanos, mais conectado com nosso tempo, mas precisamos fazer nossa parte. Diria que nós não devemos ter tanta expectativa em relação ao Biden. As perspectivas são melhores que com Trump, embora para os democratas – Obama mesmo – houve mais conflitos que Trump.
Quais são os conflitos e embates que teremos entre Biden e Bolsonaro? Um deles certamente será a questão ambiental, não é isso?
O tema do meio ambiente é algo que já ficou muito claro. Biden disse isso na campanha. Os discursos de Bolsonaro sempre tiveram uma crítica a países que desmataram e que agora querem coibir o desmatamento. Ele acredita que isso seria uma estratégia de não permitir o desenvolvimento do Estado brasileiro, especificamente numa área mais sensível, o que deixa o Estado mais vulnerável à atuação de ONGs e tudo mais para expropriação de minério. Esse discurso é paradoxal, porque os minérios continuam saindo e sendo exportados para China e Estados Unidos livremente.
Mas essa pressão não necessariamente vai passar pelo meio ambiente, acaba dialogando com a questão comercial. Já se definiu o embargo a um dos principais itens de exportação brasileira - que é a soja – em razão do desmatamento na Amazônia. Podemos sofrer algum tipo de sanção nesse campo. Mas estamos insistindo num erro histórico do Estado brasileiro, que já aconteceu com a borracha, cana, investindo muito num determinado produto porque temos um consumidor cativo, que é a China.
Outros estados estão adotando iniciativas de bloqueio comercial por motivo de violação de meio ambiente. Isso deve acontecer com os Estados Unidos nessa nova gestão? Seguramente, com um cenário mais duro, onde os argumentos e as justificativas para dificultar, por exemplo, a importação e compra de produtos.
E as perspectivas na América Latina?
Aqui há claramente aliados dos EUA como a Colômbia, Argentina e alguns países que têm uma vinculação mais forte com os americanos, assim como no quadro da OEA teremos um embate mais firme de posições com estes temas interconectados.
Em relação aos direitos humanos ou direito humanitário de conflitos armados, talvez um realinhamento dos EUA com uma modificação de política em relação à Venezuela, o que afeta diretamente a estratégia de política que vinha sendo adotada pelo governo Bolsonaro em relação à Venezuela, o que novamente se mostrou uma posição falaciosa de alinhamento ao trumpismo, principalmente porque afetou diretamente uma relação com um aliado fronteiriço.
Efetivamente não deveremos ter um cenário facilitado em relação às relações internacionais.
Como ficam às políticas de imigração de brasileiros e latino-americanos para os EUA?
Aí temos duas questões. Uma é a da concessão de vistos e daqueles que entram regularmente no país, seja para fazer turismo ou trabalhar. Essa decisão do Biden de proibir voos, ele foi muito claro de que não haverá concessões ao Estado brasileiro.
Com relação à política imigratória, existe uma proposta de Biden de regularizar a situação de alguns imigrantes ilegais que vivem nos EUA. Isso é uma sinalização bastante positiva que marca uma diferença entre Biden e Trump. Eu diria que existe uma política muito clara em relação às práticas migratórias.
O que vai existir é um discurso mais ameno em relação aos imigrantes, mas as regras continuarão a ser estabelecidas com controle das fronteiras e combate ao migrante que ingressa sem as regras estabelecidas pelo Estado norte americano.
Leia também: Trump deixa o governo dos EUA, mas continua a influenciar o populismo de Bolsonaro
Add new comment