Como acordo mundial sobre taxação de lucros de multinacionais afeta o Brasil

 “Os países estão competindo entre si, especialmente nesse contexto de economia digitalizada, em que as empresas podem ter atuação global e sem presença física”/Divulgação
“Os países estão competindo entre si, especialmente nesse contexto de economia digitalizada, em que as empresas podem ter atuação global e sem presença física”/Divulgação
Nova alíquota mundial de 15% de imposto de multinacionais deve privilegiar países mais ricos e enfraquecer América Latina.
Fecha de publicación: 30/08/2021

Um dos maiores acordos econômicos das últimas décadas, firmado por 130 países e que define uma nova alíquota mundial de 15% de imposto de multinacionais, deve privilegiar países mais ricos e enfraquecer a América Latina, avaliam especialistas. Dependendo da costura dessas mudanças, o acordo pode prejudicar também áreas especiais que oferecem incentivos fiscais com desconto no imposto de renda para atividades lucrativas.

 

No Brasil, isso pode afetar, por exemplo, a Zona Franca de Manaus e os estados onde atua a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene. LexLatin conversou sobre o acordo com Flavio Rubinstein - professor de direito tributário na FGV e sócio do VR&F Advogados – e Luís Eduardo Schoueri, professor de direito tributário da Universidade de São Paulo e sócio da firma Lacaz Martins. Acompanhe os principais trechos das duas entrevistas.


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Flavio Rubinstein

 

Como você analisa o movimento global de redimensionamento das alíquotas?

 

Os países estão competindo entre si, especialmente nesse contexto de economia digitalizada, em que as empresas podem ter atuação global sem presença física. Por isso, estão reduzindo seus IRPJs (Imposto de renda de pessoas jurídicas) como forma de se tornar mais atrativos para investimentos estrangeiros e fortalecer a competitividade das suas próprias empresas em escala global.

 

Só para dar um exemplo. Os EUA hoje têm uma alíquota federal de 21%. Vários outros países já estão com alíquotas reduzidas. No mundo, as estimativas costumam indicar que a alíquota média está em torno de 21% ... 22%.

 

O Brasil ainda está com 34%: 25% de IRPJ e mais os 9% da CSSL (Contribuição Social Sobre o Lucro). Claro que estamos com essa proposta de reforma tributária, ainda de futuro incerto, mas que pode levar a uma redução dessas alíquotas. Hoje o Brasil e alguns outros países emergentes estão com alíquotas acima dessa média mundial.

 

Cada país, especialmente os mais relevantes no cenário global, que reduzem o seu IRPJ, os outros são pressionados a fazer a mesma coisa. No momento em que se coloca uma alíquota mínima de 15% parece que todos estão normalizando esse percentual como uma alíquota aceitável. Claro que se considerarmos os paraísos fiscais mais extremos, que têm 0% de tributação - por exemplo, Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Cayman, países que efetivamente não tributam a renda de empresas - é uma mudança dramática de 0% para 15%.

 

Hoje os grandes centros de atração de estruturas de planejamento fiscal são países considerados normais com regimes privilegiados. Eles têm regimes que permitem uma tributação baixa em algumas circunstâncias. Por exemplo, Irlanda, Singapura, Holanda, Luxemburgo... são esses grandes centros de atração de investimentos e planejamento tributário global que já estão em patamares tributários muito próximos dos 15%.

 

Para os países emergentes, como o Brasil, isso é preocupante. Vamos olhar o contexto dessa medida, o chamado pilar dois da proposta da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que é a tributação mínima global. Ela tem uma série de exceções e aplicações específicas. Pelo desenho atual, ela tem um piso mínimo de receita global da empresa, que é de 750 milhões de euros (R$ 4,59 bilhões). Estamos olhando alguns grupos multinacionais e a OCDE está estimando isso num universo de 2 mil empresas.

 

São companhias que estão domiciliadas, via de regra, nos países ricos: Alemanha, França, Estados Unidos e Inglaterra. O que a medida prevê é o seguinte: vamos pegar o exemplo de uma empresa americana. Os Estados Unidos tributam a 21%. A empresa estrutura parte das suas operações com planejamento tributário na Irlanda, que tributa a 12,5%. Significa que os Estados Unidos vão poder cobrar 8,5%, que é a diferença.

 

Quem ganha com isso?

 

Para os países ricos essa medida vai trazer um ganho efetivo de receita. A estimativa da OCDE e de alguns especialistas é de algo em algo em torno de US$ 250 bilhões. Praticamente 60% disso ficaria com 10 países mais ricos. A estimativa é que de 10% a 15% iria para os países emergentes e 3% para a América Latina, porque efetivamente estamos falando das maiores multinacionais do planeta, domiciliadas em países de primeiro mundo.

 

Para o Brasil, de quanto estamos falando em termos de ganhos?

 

A Receita Federal fez um levantamento de ganho em torno de US$ 2 bilhões a US$ 3 bilhões. No caso do Brasil, esse ganho talvez seja ainda menor porque já temos regras de tributação de lucros controladas e coligadas no exterior que são bastante rígidas. Até mais rígidas que essas que a OCDE está propondo.

 

Em alguma medida já estamos tributando uma parte desses lucros no exterior. Então, no final do dia, qual o ganho efetivo que o Brasil vai ter em termos de aumento de receita? Os números ainda não estão precisos, mas aparentemente não é um ganho grande nem substancial.

 

O que muda para as grandes empresas brasileiras?

 

Vamos ficar mais isolados com uma alíquota alta. O fato de termos uma alíquota alta de IRPJ e CSSL vai trazer pouco benefício efetivo de tributação adicional - nessas regras - e vai provavelmente reduzir a competitividade brasileira como jurisdição, tanto para as nossas empresas competirem mundialmente como para atrair empresas do exterior para investir aqui. Já é um problema, porque temos hoje um sistema tributário que é pouco competitivo e isso pode ser intensificado.

 

Por isso, países emergentes estão começando agora, de maneira mais organizada, a vocalizar uma crítica a essa alíquota dos 15%. Vimos recentemente o governo argentino colocando essa posição de forma muito clara. Alguns países africanos, algumas entidades que congregam países emergentes, começando a falar que não pode ser 15%, tem que ser mais, estar próximo dos 25% - no mínimo 20%.


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Vamos lembrar que essa medida vem do G7, o grupo dos países mais ricos, com os EUA capitaneando a proposta. Então, é um projeto que foi originalmente desenhado por um grupo de países ricos que, claro, têm um interesse específico e vão ganhar mais receitas com isso.

 


Luís Eduardo Schoueri

 

Como esse acordo sobre taxação de lucros de multinacionais afeta o Brasil?

 

Essa tributação mínima de multinacionais começa com um projeto chamado Beps (Base Erosion and Profit Shifting). Ou seja, houve uma discussão de que as empresas multinacionais não estariam pagando o imposto que seria devido.

 

Curiosamente, não porque elas fizessem algo ilegal, mas simplesmente porque elas se valiam do fato de que os países não têm uma legislação idêntica. Então, essas companhias cumpriam a legislação de cada país, mas há algumas lacunas entre os países, porque cada país tributa de um jeito.

 

Sabe o "deixa que eu deixo" no vôlei e a bola cai no chão? Quer dizer, um país não tributa porque, a princípio, seria tributado em outros países. E o segundo não tributa porque seria cobrado no país de origem. Aí surgem as possibilidades das empresas se valerem desse mismatching, o desencontro das legislações tributárias.

 

Um dos campos que a OCDE entende que haveria problema seria da economia digital. Eles enxergaram que, com a digitalização da economia, haveria lucros que não estariam sendo bem captados. A partir daí propõe-se a chamada ação 1 do Beps. Essa discussão, que é feita sobre a economia digital, acaba evoluindo para além da economia digital para tratar de todas as situações de bens imateriais, intangíveis, o que tem muita volatilidade. Eles falam "não estamos conseguindo tributar corretamente essa riqueza que existe dessa economia digital". Então, avançando nisso, a OCDE propôs em 2019 que esse tema fosse tratado a partir de dois pilares, que seriam modos de tratar essa questão da economia digital.

 

O primeiro pilar fala o seguinte: "olha, devido à economia digital, nós constatamos que empresas exploram o nosso mercado, mas não pagam imposto onde elas exploram o mercado". Então, cria-se, a proposta: "é necessário que uma parte do lucro de uma empresa fique no mercado onde se reconhece que o mercado gera valor". 

 

O problema é maior para países em que essas grandes empresas sequer estão estabelecidas. No caso brasileiro, até por questões de controle cambial, as grandes empresas (Facebook, Google, por exemplo) tem subsidiárias no país. Então, de algum modo, elas são contribuintes brasileiras.

 

A ideia do pilar one é pegar parte do lucro mundial do Facebook, por exemplo, e alocar às jurisdições conforme o número de usuários ou questões parecidas com isso. Ou seja, é alocar de um modo indireto o lucro. Isso pode dar alguma renda a mais para o Brasil, mas nós já temos mecanismos de cobrança por aqui.

 

Qual seria o peso dessa discussão para o Brasil e para o resto da América Latina?

 

Nosso sistema, por conta do controle cambial, tem muitas peculiaridades. Uma delas é que a empresa precisa se estabelecer aqui. Por que? Em geral, o brasileiro não mantém contas no exterior. A maioria dos brasileiros mortais que consomem Facebook ou coisa parecida, Netflix, etc, têm cartão de crédito brasileiro.

 

Quando fazem um pagamento para o exterior, estão sujeitos a um IOF de 6,8%. Ou seja, o Brasil, por conta dessa peculiaridade, já que não somos uma economia aberta, acaba tributando à título de IOF. Com isso, não está saindo perdendo. Se a Netflix cobrar em dólar, na hora de pagar, o governo vai receber o dinheiro dele. A menos que você use um cartão internacional. Ninguém vai abrir uma conta no exterior para pagar uma conta da Netflix mensal.

 

Mas aí tem o tal do pilar two e tudo começou lá com os Estados Unidos, que fizeram um projeto que eles chamam GILTI, que foi copiado para o pilar two. O princípio básico é que se você estiver em uma jurisdição que não tribute a renda ou que tribute pouco a renda, outra jurisdição vai completar a tributação da multinacional, de tal modo que pague o mínimo de tributo, que eles estão falando em 15%.

 

Então, a ideia é assim: eu vou me instalar nas Bahamas e vou explorar uma propriedade intelectual das Bahamas porque assim eu não pago imposto das Bahamas. O que esse pilar two vai dizer? Tudo bem, se você não pagar nas Bahamas, a sua controladora vai ter que pagar o imposto que não é pago nas Bahamas.

 

E o que isso afeta o Brasil? O Brasil não é Bahamas. Portanto, uma multinacional que invista no Brasil, pode ficar tranquila, que nós já tributamos a 15%. Na verdade, o que poderia ter uma exceção é porque temos Zona Franca de Manaus, temos na Sudene e alguns projetos que pagam imposto de renda menor. Mas esse imposto de renda, hoje em dia, é superior a 15%.

 

Resumindo essa história toda, esse acordo então é para beneficiar países ricos com infraestrutura. É como se fosse uma realocação de tributação e investimentos?

 

A ideia aí é a seguinte: se o país em desenvolvimento não tributa, eu vou tributar. 


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