Desmilitarização das polícias pode significar fim das condutas abusivas?

"A polícia trabalha como uma força para o Estado, para manutenção do poder do Estado e para o controle do Estado"/Fotos Públicas
"A polícia trabalha como uma força para o Estado, para manutenção do poder do Estado e para o controle do Estado"/Fotos Públicas
Priscila Villela, pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança, avalia escalada da militarização no Brasil.
Fecha de publicación: 30/11/2021

As notícias sobre condutas abusivas das polícias militares estampam os jornais e são destaque nas tevês quase todos os dias. Nesta semana o fato que chamou a atenção foi o vídeo que circulou nas redes sociais em que um jovem aparece algemado sendo arrastado por uma moto de um policial militar em São Paulo. 

A conduta do policial militar causou comoção e revolta no país. A direção da PM promete apurar o caso e divulgou uma nota, em que diz repudiar "tal ato e reafirma o seu compromisso de proteger as pessoas, combater o crime e respeitar as leis, sendo implacável contra pontuais desvios de conduta."

Mas esse é apenas um entre centenas de casos que mostram, segundo os especialistas, que esse talvez não seja o melhor modelo de segurança pública a ser adotado, apesar de estar profundamente enraizado na cultura nacional como uma política de preservação do Estado e da segurança pública. 

O assunto é mais discutido em países de primeiro mundo. Alguns, principalmente europeus como a Bélgica, já adotaram o modelo faz mais de 30 anos. Por aqui, o assunto já foi discutido no Congresso Nacional, ainda que de forma tímida. Há oito anos, o então senador Lindbergh Farias apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que determinava a desmilitarização policial. Mas o projeto acabou sendo arquivado. 

Priscila Villela
Priscila Villela

Há quem defina a desmilitarização como eliminação da hierarquia e disciplina e redução do uso da força. Mas o que está em jogo nesta discussão? Em entrevista a LexLatin, Priscila Villela, especialista de estudos de segurança, professora de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança (NETS) avalia as questões relevantes do debate da desmilitarização das polícias no Brasil e no mundo. Acompanhe.

Quais são os pontos que você acha que são essenciais nessa discussão?

Antes de tudo, o que passou a ser definido como militarização, pela literatura e no debate público, em grande medida significa uma deturpação das funções originais atribuídas tanto às instituições militares quanto às instituições policiais. Isso se manifesta de diferentes formas, por exemplo, pelo emprego recorrente de forças armadas em operações urbanas. Ou então isso se manifesta na transformação dos próprios métodos de treinamento, uso de armamentos e tipos de operações que as polícias têm conduzido.

Traduzindo, as polícias estão se parecendo cada vez mais com os militares. Essa deturpação das funções tem sido chamada de militarização da segurança pública e militarização das polícias. Mas esse processo também tem sido visto por estudiosos a partir de uma transformação mais ampla, que está se desenrolando no nível da sociedade. Para além de uma deturpação de funções das instituições, existe também uma militarização de todo o centro urbano, da cidade, de todas as políticas urbanas para além do universo da segurança.

Hoje andamos nas ruas e os prédios parecem fortificações, com muros muito altos, com checkpoints para controlar quem entra e quem sai, seguranças na porta fazendo controle de fluxo de pessoas. Essas são infraestruturas urbanas corriqueiras do nosso dia a dia. Você sai do seu prédio hoje, passa por não sei quantas câmeras, dois portões, um segurança na porta te perguntando quem você é. Tem toda uma militarização que transcende as funções das polícias e dos militares.

A própria organização da nossa vida na cidade tem relação com essa discussão: crescimento de condomínios fechados, esse modelo Alphaville, por exemplo, que teve muito sucesso porque cria estas fortificações e bolhas de segurança. Eu vejo esse processo a partir desse olhar mais amplo. 

O trabalho de segurança pública é entendido hoje como uma prestação de mais um serviço à sociedade ou vai além disso?

O trabalho da segurança pública, de maneira mais geral, deveria ser entendido como uma prestação de serviço para a sociedade. No entanto, o que temos mais claramente é que a polícia trabalha como uma força para o Estado, para manutenção do poder do Estado e para o controle do Estado.

E, portanto, esse serviço chega na sociedade para segurar algumas das ameaças representadas por outros grupos. Isso é muito próprio de uma linguagem de guerra que é a identificação de inimigos. Eu acho que hoje está muito presente na linguagem e no trabalho da polícia a identificação de grupos que são classificados e vistos como inimigos.

Podemos definir isso muito claramente em termos de classe social e raça. Hoje as populações periféricas e, sobretudo, a população negra é vista como inimiga de uma ordem pública que deve ser garantida e mantida. Esses grupos sociais são vistos como os inimigos da elite, das classes dominantes que devem ser protegidas.

Então, cada vez mais, a gente vê uma lógica mais explícita da polícia sendo essa entidade que trabalha a serviço do Estado para a garantia e manutenção de uma ordem. É uma ordem desigual, muito injusta e mantida por uma elite. Tanto é, que cada vez mais esse serviço tem sido ocupado por atores privados também.

Hoje em dia a segurança, mais do que um direito do cidadão, é um produto que pode ser comprado. Os serviços nessas grandes fortificações que eu falei no começo, a maioria delas são prestados por empresas. Você pode comprar a sua segurança.

Há vários casos de abusos nesse mercado privado. Um exemplo foi a morte de João Alberto Silveira Freitas no Carrefour de Porto Alegre há um ano. Essa discussão já foi naturalizada pela sociedade?

Tem todo um debate sobre isso, de como esse mesmo Estado que hoje usa a polícia para a manutenção dessa ordem desigual, que protege a elite das classes subalternas, tem regulado esse mercado privado também de um jeito bastante questionável.

O próprio Estado tem permitido dividir suas funções, terceirizar o serviço da segurança para esse mercado, regulamentando esses serviços - ainda que no Brasil boa parte dessas empresas não sejam reguladas. Como no caso que você citou do Carrefour, por exemplo, o que a gente tem visto é que aquele indivíduo que estava na porta, o funcionário da empresa, é responsabilizado, mas a empresa não. 

Existe um modelo viável para desmilitarização? Esse é um assunto muito pouco falado por aqui e, quando é falado, é abordado muitas vezes com um desconhecimento muito grande. Essa é uma discussão para agora no Brasil ou para um futuro distante?

É uma pergunta muito complicada, porque eu acho que ela não passa só pelas estruturas de segurança pública. A primeira coisa é que eu acho inviável nesse governo qualquer debate nesse sentido. Esse é um governo em que a gente está discutindo militarização das escolas. Estamos indo para outros níveis da sociedade.

Esse processo que tem sido chamado internacionalmente de militarização tem acontecido nos centros urbanos, em grande medida, respondendo a algumas transformações que se dão em outras esferas da política, especialmente políticas econômicas. O que a gente observa em muitos lugares são as políticas de redução do Estado, no sentido de políticas de bem-estar social, políticas sociais de redistribuição de renda.

A redução desse tipo de ação tem sido acompanhada de um fortalecimento do Estado na segurança pública. Esses típicos governos neoliberais, em geral, têm políticas de segurança pública muito repressivas. 

Analistas olham para esse processo no sentido de quanto que esse recrudescimento da polícia tem a ver também com jogar na mão da polícia o papel de responder às contradições e problemas criados pelas políticas de austeridade, pela redução de direitos, por desemprego, por redução de auxílio. Essa redução do Estado de Bem-Estar Social cria contradições e problemas sociais que têm sido jogados na mão da polícia.

A polícia vai ter que conter os efeitos disso. É o direito penal que vai ter que lidar com uma mulher desempregada passando fome que rouba um miojo para alimentar o seu filho. Acho que pensar Numa polícia diferente é também pensar num modelo de sociedade diferente. Uma sociedade que não olhe para essas questões a partir de um olhar da segurança, mas em políticas que não lidem com isso a partir da ótica da repressão.

Só isso já altera a polícia. Eu acho que tem essa dimensão estrutural que é fundamental e existe também uma dimensão de mudar também as polícias. O treinamento que as polícias recebem hoje é muito violento. Elas são treinadas para serem violentas e identificar inimigos. 

Teve um general da Rota que assumiu em São Paulo que deu uma declaração dizendo que o tratamento que o policial dá para a periferia é diferente do Jardins. Isso é muito revelador de que não se trata de falta de treinamento ou despreparo, eles são realmente preparados para isso. Buscar políticas que repensam linguagens, a educação, a própria formação dos policiais também pode desempenhar um papel importante.

É preciso uma própria consciência do policial de que ele também é classe trabalhadora. Muitos deles também vem da periferia, são muito mal pagos e, no entanto, reproduzem uma política que reprime a classe trabalhadora, que é racista, e muitas vezes não têm a própria consciência disso. 

Que discussões sobre a desmilitarização têm acontecido no mundo hoje em dia?

Priscila Villela
Priscila Villela

Uma das discussões que tem acontecido mundialmente é o que eles chamam de polícia comunitária. Nós tivemos algumas experiências pontuais no Brasil. A Colômbia tem desenhado algumas soluções nesse sentido, que faz parte também do processo de paz, reforma e desmilitarização das polícias. Acho que tem uma explicação no nível doméstico brasileiro, e até da América Latina, que são as experiências das ditaduras militares. Eu acho que isso define o próprio DNA das polícias brasileiras.

Elas são muito militarizadas nas suas origens. A polícia militar tem um desenho institucional muito militarizado. As polícias nasceram muito atreladas às Forças Armadas e a ditadura reforçou tudo isso. Os militares na política, em toda a estrutura da sociedade, são muito presentes na história do Brasil, de maneira geral. Então, existe essa explicação um pouco mais doméstica. 

Temos uma explicação também no nível internacional que tem a ver com a presença dos Estados Unidos na região, o papel que o tráfico internacional de drogas desempenhou nessa relação dos países latino-americanos com os Estados Unidos e um reforço para o recrudescimento das políticas de segurança pública, das ações policiais, da militarização da polícia, que emanavam de diretrizes postas pelos Estados Unidos também.

Eu acho que a nossa dificuldade em oferecer respostas tem muito a ver com a estrutura da nossa sociedade. Temos hoje uma relação violenta entre Estado e sociedade. Isso é resultado de muita injustiça social e desigualdade, o que muito difícil a implementação desse modelo aqui.

Qual o caminho para a sociedade brasileira discutir essa questão de agora em diante? É fazer lei, trabalhar essa questão da polícia comunitária, é criar novas polícias? 

Acho que tem políticas possíveis para diferentes alcances e que duram tempos diferentes. É fundamental uma reforma do setor de justiça no Brasil. Desmilitarizar todo o setor de justiça e, inclusive, repensar o formato das polícias e essas estruturas intrinsecamente militarizadas das polícias é um caminho. É algo difícil, árduo, que mexe com as instituições e tudo isso é muito difícil de passar pelo Congresso e pelo debate na sociedade. 

O segundo caminho que eu acho que tem que acontecer paralelamente a isso é mudar o foco, tirar os debates na sociedade sobre nossos problemas sociais da esfera policial. Tirar a lente da segurança para pensar temas como, por exemplo, população em situação de rua, periferia, o problema das drogas. Tudo isso tem que sair da lente da segurança e os orçamentos e esforços políticos devem ser redirecionados para outras pastas.

Pastas da saúde, do serviço social, da moradia...temos que pensar a partir de outras lentes os nossos problemas sociais. Eu vejo essas duas importantes mudanças. Uma mudança institucional do modelo das polícias e da nossa segurança pública e uma mudança também mais no âmbito da política, de tirar a segurança como a lente a partir da qual enxergamos nossos problemas sociais. 

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