“Existe segregação racial por regiões no Brasil”

"O direito brasileiro, com esta grande exclusão dos profissionais negros, normalizou a ausência de diversidade nos espaços jurídicos"/Fotos Públicas
"O direito brasileiro, com esta grande exclusão dos profissionais negros, normalizou a ausência de diversidade nos espaços jurídicos"/Fotos Públicas
Especialista fala sobre racismo, território e como o sistema Judicial brasileiro pode ser desigual para negros e brancos.
Fecha de publicación: 18/06/2020
Etiquetas: Brasil

Ela é advogada formada pela Universidade do Estado do Rio de janeiro (Uerj), fez mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo e um LL.M na área de teoria crítica racial pela Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, nos EUA.

Desde os 16 anos, Allyne Andrade e Silva faz parte do movimento negro brasileiro e luta pelo movimento de ações afirmativas, de diversidade e de inclusão. A advogada, especialista em direito penal, tem um olhar crítico sobre o sistema jurídico brasileiro.

Em conversa com LexLatin, Allyne, que é superintendente adjunta do Fundo Brasil de Direitos Humanos, fala de superencarceramento de jovens negros, ação da polícia e diferença de tratamento entre negros e brancos.

Ela também aponta questões pouco discutidas, como a segregação de negros feita por regiões nas cidades brasileiras, principalmente nos bairros nobres, onde, aponta ela, muitas vezes a população negra não é bem vinda.

Como você vê a questão do racismo no mundo jurídico. Que tipos de práticas precisam ser mudadas?

Allyne Andrade: Eu acredito que a gente tem primeiro uma desigualdade da formação das carreiras jurídicas. E dependendo da faculdade ou universidade que você acessa, a diferença de oportunidades já é muito grande. Normalmente, antes das ações afirmativas (políticas que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente), nós tínhamos um perfil muito parecido de pessoas nestas faculdades de elite, que são as que vão ocupar os cargos de maior prestígio dentro das carreiras jurídicas, tanto as públicas quanto dos grandes escritórios de advocacia.

Com as ações afirmativas, estes estudantes negros começaram a disputar o mercado de trabalho, mas ainda é um percentual muito pequeno. O que a gente vê é que o mercado jurídico não reflete ainda a diversidade e procura entender este fenômeno, de ter agora profissionais disponíveis, com uma boa formação e que não possuem a mesma trajetória nem de classe nem de raça que o ambiente jurídico normalmente está acostumado.

Sem contar que o mercado jurídico de elite não considera talentos que vêm de universidades que não são de prestígio. Temos muitos estudantes negros que não são destas universidades, mas que são excelentes profissionais.

Allyne Andrade

As empresas de advocacia precisam hoje abrir alguns filtros para que os advogados negros possam fazer parte desse lugar dentro da advocacia de elite no pais? As pessoas negras não se veem nos grandes escritórios, por exemplo? Como é essa barreira “invisível”?

Allyne Andrade: É difícil, porque você não se vê entre os sócios, você não se vê entre os professores, que muitas vezes fazem parte destes grandes escritórios. É preciso dizer que os processos de seleção são muito violentos. Eu enquanto estagiária cheguei a vários processos seletivos até o final, de grandes escritórios, de grandes auditorias, e não consegui entrar, foi muito difícil.

Em muitos, eu fui aceita pelo meu currículo, fui até o final e não fui selecionada, ficava sempre eu e mais um colega branco e eu nunca era selecionada. Isso poderia ser só um acaso da vida, até que uma das advogadas, um ou dois anos depois, me ligou e me chamou para trabalhar com ela, num grande escritório de advocacia do Rio de Janeiro, e disse que ela ficou muito chocada e que guardou meu telefone.

Queria me chamar para trabalhar com ela, estava liderando uma área nova neste escritório. Ela tinha 100% de certeza que eu era a melhor candidata e que não fui escolhida porque eu era negra. Esse, inclusive, foi meu primeiro emprego.

Eu tenho defendido a inclusão de estudantes negros e pessoas negras nestes espaços e eu coleciono muitas histórias. Eu estou te contando a minha, mas todo mundo que conseguiu furar essa bolha tem uma história muito parecida para contar.

Por isso, é importante que os escritórios e espaços busquem contratar consultorias de diversidade que de fato estão pensando numa seleção sensível e voltada para escolher os melhores, para além das desigualdades, porque isso muda muito, acho que atrai outras pessoas. Em muitos lugares onde trabalhei fui a primeira negra a ser contratada em determinada posição.

A minha presença nestes espaços também traz um perfil diferente. No penúltimo lugar que trabalhei, fui a primeira negra contratada no setor de coordenação. Quando eu saí tinham cinco coordenadores negros. Existem profissionais que precisam só de um olhar mais sensível, que estão preparados.

Falando sobre vítimas da Justiça, sobre o encarceramento do negro hoje em dia. Você tem um trabalho consistente nesse meio. Queria que você falasse de como a Justiça trabalha essa questão da prisão de pessoas negras. Existe uma cultura escravocrata que chegou até nossos dias, em relação a condenações, em relação a processos? É por isso que as prisões têm uma maioria de pessoas negras hoje no nosso país?

Allyne Andrade: Para responder essa pergunta, eu queria contar um pouco de como eu entro para a área criminal. Eu faço parte do movimento negro desde os 16 anos de idade, desde 2002. Eu sempre fui do movimento de ações afirmativas, de diversidade e inclusão.

Durante muitos anos, trabalhei com a questão de ingresso no ensino superior e cotas para concurso público, fiz várias coisas nesse sentido. Em um determinado momento, nesse processo de estudo de relações raciais e de reflexão muito ampla, de ir aprendendo com as lideranças do movimento negro e com muita gente do campo de ciências criminais. Eu trabalhei no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) durante três anos e aquele espaço me fez refletir.

Existia um campo que não avançava no Brasil, que é a criminalização da juventude negra, além do genocídio e da alta violência e letalidade policial contra os jovens negros.

Como me viam falando sobre Justiça racial e sobre relações raciais, as pessoas começaram a me pedir ajuda. E como eu estava trabalhando também num gabinete parlamentar na época, me assustou muito o número de mães que chegavam e diziam: olha, meu filho participou de uma batida policial e sumiu, eu não tenho resposta, a gente não consegue achar no sistema. Ou: olha, disseram que meu filho fez isso, eu não consigo ler a sentença.

A realidade que vivi comprovou o que as estatísticas dizem. Temos um número enorme de jovens negros nessa situação. São homens, mas muitas mulheres também,  porque temos hoje um superencarceramento de mulheres no Brasil, que cresceu mais de 600% em dez anos.

Os jovens que me procuram - e muitas vezes as mães e os familiares - são réus primários, a maioria ligados a crimes com posse de drogas, tráfico de drogas, somente com testemunho policial.

O sistema aceita isso, apenas o testemunho de policiais?

Allyne Andrade: É algo muito grave. Vem com uma fragilidade processual muito grande. Muitas vezes, vem com o descumprimento do próprio rito do Código de Processo Penal para o reconhecimento de testemunhas, quando são crimes patrimoniais. Hoje, muitas pessoas são presas provisórias, poderiam ficar em suas casas.

Eu fiz uma mobilização entre os advogados pela Babi Querino (a modelo negra foi condenada por assalto em São Paulo, mas apresentou provas no processo que não estava na capital paulista - e mesmo assim foi condenada e cumpriu dois anos de prisão).

A palavra determinante é que a assaltante, a criminosa, tinha o cabelo igual ao dela. E isso mesmo ela com amplas provas de que estava em Santos na data do assalto. Babi é uma dançarina, teve a vida dela interrompida, mas é uma guerreira, porque ficou presa por dois anos – dos 19 aos 21 anos. Resistiu, voltou com sanidade, mas ninguém sai igual de um processo desses.

Atendi a inúmeros jovens negros. E a polícia demora muito a dar notícias para as famílias. O processo de cadastramento de visitas é extremamente violento para as famílias.

Outra questão importante é a política de drogas, que hoje é uma política irracional, responsável pelo superencarceramento. Essa política dá uma carta branca para a violência nos territórios, principalmente nas periferias. Tivemos aí a morte de seis crianças negras, só no Rio de Janeiro, nas suas casas com seus pais, só em 2019. Essa política de drogas dá uma carta branca de invasão de territórios de favelas.

O jovem negro já é culpabilizado na largada desse processo?

Allyne Andrade: Temos hoje uma polícia que prende, investiga e sentencia. É muito difícil, depois de você ser preso pela polícia, se liberar no curso do processo. Tem muitos casos de prisão injusta,  é assustador. É como se a palavra policial fosse a rainha das testemunhas.

Normalmente são pessoas pobres e desprovidas de recursos para ter uma defesa técnica das mais qualificadas. A Defensoria Pública faz muito pela liberação destas pessoas, mas a própria estrutura não dá conta dessa política de moer gente que tem sido a política de drogas no Brasil.

Então as pessoas já são condenadas. Temos casos no Rio de Janeiro absurdos. A polícia, na época das Olimpíadas, estava parando os ônibus e mandando descer todos os jovens negros que iam para a praia que não tivessem dinheiro.

Se um menino jovem adolescente tivesse só o dinheiro da passagem de ida e volta para ir à praia eles eram detidos ao longo do dia. Quantos jovens pobres já não fizeram isso? Aqui em São Paulo tivemos declarações da polícia de que eles não param jovens no Jardins como param em Heliópolis.

Como você vê essa segregação? Ela acontece principalmente com a população negra?

Allyne Andrade: Essa é uma discussão que ainda não fizemos a sério no Brasil. As pessoas sempre vão dizer que o Brasil não é um espaço segregado, que somos uma democracia, mas na verdade existe segregação racial nas regiões. Eu poderia dizer que os principais bairros ricos do Brasil – Leblon, Higienópolis, Jardins – são bairros de brancos.

A periferia é democrática: temos migrantes, brancos, negros, pardos. Mas os bairros de ricos são extremamente segregados racialmente. Isso é resultado de uma exclusão racial que faz com que não possamos morar nestes bairros, porque não temos condições financeiras para acessar estes lugares.

Mas ao mesmo tempo, quando a gente acessa, o espaço é tão violento para estas pessoas negras que estão nestes espaços que acaba também sendo um espaço não convidativo, mesmo para aqueles poucos negros que conseguiram “vencer” dentro do que a gente entende como capitalismo, de ter mais recursos econômicos para morar em determinados lugares.

Não temos ainda uma consolidação de uma classe negra média sustentável no Brasil, com herança, que não depende apenas da força do seu trabalho, que se sustenta a longo prazo numa vida num bairro de classe média alta.

Existe preconceito de juízes e promotores em relação a um réu negro, na comparação com um réu branco? E se existe, esse preconceito acaba sendo cumulativo para a sentença e condenação?

Allyne Andrade: Eu acredito que sim. Se colocarmos jovens brancos e jovens negros presos algumas vezes com a mesma quantidade de drogas, os jovens brancos têm muito mais chances de serem considerados como usuários. Os jovens negros muito mais chances de serem considerados como traficantes.

Se é um jovem branco de classe média, existe o pensamento de que ele foi lá e comprou mais quantidade, é um usuário de drogas e faz um uso abusivo, de que ele vai lá comprar uma grande quantidade e consumir na casa dele como um usuário.

Se for um menino negro vão dizer que não tem dinheiro para comprar essa quantidade, só pode ser traficante. Esse raciocínio é muito comum no sistema de Justiça. Temos umas decisões conscientes e outras inconscientes, mas existe um pré-julgamento muitas vezes.

E ainda temos uma polícia que investiga poucos homicídios e feminicídios.  Então a política antidrogas, essa seletividade da polícia, o perfilamento racial, faz com que isso vá virando uma máquina. Nós temos juízes muito insensíveis, inclusive à adoção de penas alternativas. Se não é um crime grave, pode dar essas medidas alternativas. O encarceramento é muito insensível à realidade e não pensa nenhuma possibilidade de recuperação.

Esse jovem que vai passar pelo sistema criminal tem uma possibilidade muito grande de não sair jamais, porque a sociedade vai ceifando dele todas as possibilidades. Tem algumas pessoas que resistem e conseguem romper esse ciclo.

Temos também o lado das prisões injustas, mas também essa opção que o Estado brasileiro fez de não participar da ressocialização, de não ter política pública, que devolva essa pessoa que passou pela Justiça criminal para a sociedade, que volte para educação e para emprego.

A nossa sociedade escolheu isso e tem escolhido excluir estas pessoas “ad eternum”. A pessoa continua a cumprir a pena depois que sai, porque não tem oportunidade de inclusão.

Então ainda há um longo caminho a percorrer pela inclusão racial no mundo jurídico?

Allyne Andrade: O direito brasileiro, com esta grande exclusão dos profissionais negros, normalizou a ausência de diversidade nos espaços jurídicos. Esse ganho de diversidade de olhares e de trajetórias é um ganho não só da pessoa que anteriormente era excluída, é um ganho dos próprios espaços de advocacia, que vão poder pensar uma determinada questão de formas mais diversas.

Ideias plurais, trajetórias plurais, trazem resultados de excelência para advocacia. O mercado já não aceita mais a falta de diversidade. Temos grandes empresas hoje mundialmente que já não aceitam mais escritórios que não tenham diversidade de gênero.

Daqui a pouco não vão aceitar mais escritórios que não tenham diversidade racial, porque isso significa um atestado da falta de compromisso daquela empresa, daquele grande escritório, com as questões prementes da nossa contemporaneidade: que é diversidade, a inclusão. E aí a diversidade funciona como um valor não só para aquele que é incluído, mas também para aqueles que estavam alheios a todas as outras experiências que a sociedade tem e, por isso, impossibilitadas de conhecer novos saberes, de pensar novas formas de solução jurídica.

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