Felipe Santa Cruz: “Nossas instituições não são capazes de suportar mais quatro anos de Bolsonaro”

Em entrevista a LexLatin, advogado analisa publicidade na advocacia e mudanças no mercado jurídico causadas pela pandemia/Divulgação
Em entrevista a LexLatin, advogado analisa publicidade na advocacia e mudanças no mercado jurídico causadas pela pandemia/Divulgação
Presidente da OAB fala da necessidade de posicionamento no atual momento político.
Fecha de publicación: 05/07/2021

Ele é um dos principais críticos do governo Bolsonaro. Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, ultimamente tem mobilizado a classe para dar viabilidade ao impeachment do presidente da República.

 

“Os fatos recentes, desvendados pela CPI no Senado, colocam ainda mais luz sobre a responsabilidade clara do governo federal com relação à tragédia que vivemos. Nosso direito constitucional básico – o direito à vida – está sob séria ameaça”, diz. O advogado fala em ameaça constante, durante o mandato de Bolsonaro, ao Estado Democrático de Direito e instituições brasileiras.

 

Uma crítica que começou bem antes da pandemia, lá em 2019, quando Bolsonaro falou sobre o pai dele, morto durante a ditadura militar. "Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele", afirmou Bolsonaro em julho de 2019, quando criticou a atuação da OAB no caso de Adélio Bispo, o homem que esfaqueou Bolsonaro na campanha presidencial de 2018.


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O atual presidente da OAB é filho de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, estudante de Direito desaparecido em 1974 depois de ser preso por militares do Doi-Codi, no Rio de Janeiro.

 

Antes de ser presidente do Conselho Federal da entidade, Santa Cruz comandou a OAB carioca e a Caixa de Assistência aos Advogados do Rio de Janeiro. Ele é formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e tem mestrado em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

Entre suas bandeiras de defesa estão o direito de manifestação, de diálogo e o sigilo das comunicações do cliente com seu advogado. Ele foi um dos responsáveis pela criação do Estatuto do Advogado, que universaliza o acesso do setor de serviços ao Simples Nacional, ou o Supersimples.

 

Entre seus adversários, é acusado de usar a OAB para fazer uso político, algo que ele reafirma como tradição da entidade na luta da defesa dos direitos e de posicionamento. Em entrevista a LexLatin, Santa Cruz fala sobre atualidade política e jurídica, publicidade na advocacia e pandemia. Acompanhe.

 

Como o senhor avalia o novo provimento da OAB e essa mudança da publicidade na advocacia?

 

Felipe Santa Cruz

Eu entendo que o momento exige a capacidade nossa de fazer reformas profundas no exercício da advocacia. Vai nascer uma nova advocacia de tudo o que está acontecendo. Aliás, vai nascer um novo mundo em termos de trabalho. Essa experiência online é democratizante por um lado, mas corre o risco de, por outro, aumentar muito a produtividade dos grandes escritórios e eliminar postos de trabalho dos mais novos, daqueles que começam a carreira naquelas atividades mais simples.

 

Isso nos preocupa. Então colocamos em pauta, fizemos uma grande discussão nacional e audiências públicas no país inteiro porque sabemos que o tema é delicado. Porque o Brasil tem essa escola vitoriosa de uma advocacia não mercantil.

 

O fato de a advocacia não ter uma agressiva política de marketing, de publicidade, como tem em outros países como os Estados Unidos, não significa que não seja um mercado. É um mercado. Seria tapar o sol com a peneira achar que as pessoas não estão numa lógica de mercado que é concorrencial. Ela tem que ser pautada dentro desses nossos princípios. Por isso temos que fazer mudanças que possibilitem, em especial aos mais jovens, comunicar a sua advocacia.

 

Aquele quadro clássico do advogado com seu escritório, o cliente passeando pelo centro da cidade, isso não existe mais. E também não tende a voltar. O advogado sendo conhecido pela propaganda boca-a-boca, as pessoas vão ficar muito mais isoladas, as cidades tendem a se descentralizar e a gente tem que possibilitar que a advocacia trabalhe com esse novo quadro.

 

É claro que é delicado, é uma discussão que está tomando muito tempo do Conselho Federal porque ela mexe em tradições nossas. Não acredito que essa mudança inicial seja a definitiva, acho que é um processo que nós iniciamos e isso vai ter que ser temperado pelos próprios acontecimentos, por exemplo, no retorno ao trabalho presencial. A própria dinâmica das alterações processuais e no funcionamento dos tribunais vai influenciar nisso.

 

O Sr. tem um histórico de defesa do direito à manifestação e ao diálogo. Como é que fica a advocacia, a garantia desses direitos neste momento? O Sr. é muito crítico em relação a esse governo, como avalia a pandemia e o momento político?

 

Esse é um governo que não tem qualquer tradição democrática. Ele trabalha o tempo todo com a ideia de ruptura e nós da advocacia brasileira somos portadores históricos dessas bandeiras de liberdade, de Estado Democrático de Direito. Somos a profissão que foi fundamental para a Constituição de 1988, da qual esse governo é claramente inimigo. Nós quando nos formamos, juramos defender o meio ambiente e esse é um governo inimigo do meio ambiente.

 

Logo no início da minha gestão eu criei o Observatório da Liberdade de Imprensa, que foi fundamental para fazer a defesa dos jornalistas, porque sabíamos o que ia acontecer. Hoje essa luta se dá de forma mais clara porque as pessoas minimamente atentas já fizeram sua escolha. Quem segue apoiando esse governo hoje apoia um projeto autoritário. Pode até fingir que não, mas apoia um projeto de ruptura constitucional, de censura da imprensa e todo esse arcabouço que é incompatível com a advocacia. Eu já lutei muito mais sozinho do que estou hoje.

 

Como o Sr. vê algumas possibilidades jurídicas, esses enquadramentos todos da Lei de Segurança Nacional, essa possibilidade de civis serem julgados pela Justiça Militar? Como vê essas manifestações que ferem esse direito à crítica e à livre expressão?

 

Essa de civis serem julgados pela Lei Militar é algo típico da ditadura, isso é exatamente o que fizeram com os jovens da época. É um absurdo. É tão ridículo, é mais ou menos como a do poder moderador das forças armadas. O governo lança esses balões de ensaio para animar essa claque que ele tem que é muito ignorante. Isso não existe juridicamente, nem vou fazer grandes discussões.

 

O que nós temos que discutir são outras questões: o governo quebrou por decreto o limite de dois anos de militares da ativa. Há mais de 6 mil militares da ativa em cargos comissionados do governo. Esse aparelhamento, essa confusão entre a ativa das Forças Armadas e as políticas de governo nos preocupa.

 

Acho que isso sim mereceria do Congresso Nacional uma resposta, estamos estudando medidas em virtude deste decreto. Isso sim é muito preocupante porque cria um modelo muito parecido com o que Hugo Chávez estabeleceu na Venezuela. A partir do aparelhamento das Forças Armadas com as facilidades do governo, dos cargos, dos imóveis remunerados, pode levar as Forças Armadas a uma politização que na história do Brasil sempre deu errado.

 

Como o Sr. avalia hoje a atuação do Congresso e do STF?

 

O STF com acertos e erros cumpre o seu papel. É o grande guardião da Constituição. O Legislativo brasileiro evoluiu bastante também nesta legislatura. Ele tem se afirmado para a democracia. Claro que ali existem questões que extrapolam essa dualidade, esse conflito, questões mais complexas, mas acredito que é um Legislativo comprometido na sua ampla maioria com o Estado Democrático de Direito.

 

Tem tocado o Senado essa CPI que é importante. O governo federal aqui no Brasil praticou violências, absurdos no combate à Covid-19. Foi parceiro do vírus. Tem sido uma CPI importante. A partir dela certamente teremos desdobramentos legais. Os prioritários serão nas Cortes Internacionais, nos Tribunais Penais Internacionais. Já há parecer inclusive da OAB que foi entregue à CPI, dos principais juristas brasileiros, apontando crimes contra a humanidade.

 

O senhor acredita que a CPI tem condições de criar um ambiente para punições dos envolvidos, inclusive do presidente? Ou é algo para médio prazo?

 

Acredito que é algo para médio prazo. Assim como aconteceu nos Estados Unidos na eleição de Donald Trump, o presidente Bolsonaro é uma franquia do trumpismo, não é nem a loja principal, é um franqueado com todas as fragilidades de um franqueado.

 

O destino do Brasil vai se encontrar na eleição do ano que vem. Nossas instituições não são capazes de suportar mais quatro anos de Bolsonaro. Hoje elas estão suportando com muita pressão, mas estão suportando a defesa da democracia. Mais quatro anos desse projeto militarizado, de cooptação, de ligação com o crime, de facilitação do desmatamento, do garimpo ilegal, da violação das terras indígenas pode ser fatal para nossa democracia.

 

O Sr. tem amplo apoio de muita gente, mas também tem oposição: gente que critica posições políticas da Ordem. A OAB tem que ter posição política? Ela precisa se manifestar?

 

Nosso estatuto - é uma lei federal - diz que a OAB tem essa função corporativa que eu toco todos os dias. Foi na minha gestão que se conquistou a criminalização da violação das prerrogativas dos advogados no Brasil. Mas ela tem como missão principal ser líder da sociedade civil na busca da construção do Estado Democrático de Direito. Na época também se fazia críticas a Raimundo Faoro, a Eduardo Seabra Fagundes que resistiu à ditadura.

 

Esse é o papel da advocacia. Quem critica essa linha de atuação de liderança da advocacia brasileira, esse desconhecimento é basicamente o desconhecimento da história da OAB e do seu papel legal e constitucional. Não é à toa que estamos citados 32 vezes na Constituição e somos a única profissão privada constitucionalizada.

 

Falando um pouco sobre escritórios, o Sr. durante a sua gestão no Rio de Janeiro ajudou a enquadrar as firmas no regime de micro e pequenas empresas. O Sr. também discutiu a questão de déficit de juízes. Como vê isso agora, na presidência nacional da OAB?

 

Foram muito importantes esses avanços para a advocacia brasileira se formalizar e oficializar o seu funcionamento. São questões básicas para esse novo momento que quase tudo será online. Agora o grande desafio é que aquelas nossas velhas respostas não são mais aplicáveis a esse novo momento. Volto a dizer, esse novo momento que nasce agora temos que lutar para que o trabalho volte presencial após a pandemia. Principalmente nas primeiras instâncias, principalmente para as audiências de instrução.

 

Nossos escritórios vão se organizar de forma diferente. O que eu mais ouço são colegas grandes diminuindo área, deixando as pessoas trabalharem em casa. Isso, por um lado, por exemplo, é muito positivo para mulheres. Metade da advocacia hoje é composta por mulheres, que acabam tendo essa dupla jornada familiar.

 

Felipe Santa Cruz

Nessa semana mesmo eu fui sustentar um processo e uma colega explicou para o desembargador que estava preocupada porque tinha que buscar o filho na escola:  ele aguardou o retorno dela para sustentar. É um novo mundo. Acho que vamos ter que estudar muito a realidade desse novo mercado que é enorme, de mais de R$ 50 bilhões por ano e de 1 milhão e 300 mil advogados. A partir daí, fazer o que sempre fizemos, que é lutar por avanços, por adequações do próprio mercado.

 

Quais são as bandeiras da OAB nesse meio final de mandato do senhor, até 2022?

 

Nós estamos trabalhando prioritariamente uma ação que distribuímos no Supremo para que o poder Judiciário cumpra o artigo 85 do Novo Código de Processo Civil, que são os honorários dos advogados. Foi uma conquista nossa que vem sendo desrespeitada em muitas instâncias. Essa é a nossa prioridade. No campo geral, a defesa da liberdade e da democracia, porque não há advocacia plena e vigorosa que não seja advocacia na democracia.

 

A Ordem está fazendo seu papel diante das atrocidades da pandemia?

 

Eu acredito que sim. Estamos trabalhando no limite das pressões, elas estão sendo muito estressadas, muito forçadas. Mas vem fazendo seu papel e resistindo a um quadro onde existe um líder nacional, eleito pelo voto, que trabalha todos os dias para romper os diques da democracia, as contenções que a Constituição lhe impõe. Com claro intuito de criar no país uma República miliciana que possa derrubar todas as florestas, explorar todos os garimpos e enriquecer seus amigos.

 

Qual o papel da diversidade na advocacia? Essa nova advocacia inclui essa mudança? Como os preconceitos podem ser quebrados?

 

Eu falei que minha gestão é reformista, gestões reformistas só a história pode julgar. O tempo precisa de um distanciamento. Nós aprovamos, com meu apoio, meu voto decisivo, que nas nossas eleições em novembro, as nossas chapas terão que ter necessariamente metade homens e metade mulheres, reproduzindo fielmente a distribuição da nossa classe. Também aprovamos a inclusão de 30% de uma cota racial para negros e pardos. Acho que isso em dez anos vai mudar a face da advocacia. Teremos uma OAB menos elitizada, que reflete realmente a luta do conjunto da advocacia. Eu ouso dizer que talvez esse seja verdadeiramente o legado que construímos nesses breves e difíceis três anos.

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