Embate entre poderes deixa instituições vulneráveis?

"Não acredito em ruptura institucional, acho que nós vamos ter uma tentativa de ruptura institucional"/Arquivo pessoal
"Não acredito em ruptura institucional, acho que nós vamos ter uma tentativa de ruptura institucional"/Arquivo pessoal
Hamilton Dias de Souza, um dos tributaristas em atividade mais antigos do país, avalia conjuntura política e econômica do Brasil em tempos de eleições.
Fecha de publicación: 15/08/2022

Ele é um dos principais nomes do Direito Tributário brasileiro e uma voz na luta em favor do Estado Democrático de Direito. O advogado tributário Hamilton Dias de Souza tem 56 anos de carreira e, do alto de sua experiência, atravessou a ditadura, viu a redemocratização e todos os governos que passaram desde então. Tanta experiência lhe permite dizer: "nunca vi nada parecido com o que temos hoje". Ele se refere à briga entre poderes e ruptura da ordem institucional no Executivo, Legislativo e Judiciário. Em sua avaliação, o Estado brasileiro hoje é disfuncional. 

O advogado, graduado em 1966 pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi professor até se aposentar na mesma instituição em que se formou. Ele foi um dos juristas a assinar o manifesto a favor da Democracia, que já ultrapassa 1 milhão de assinaturas. 

Em entrevista a LexLatin, ele fala do risco Bolsonaro e de como o embate entre poderes deixou o país mais frágil, com a classe política mais poderosa e as instituições mais vulneráveis. Acompanhe a entrevista a seguir. 

Luciano Teixeira: Em seus mais de 50 anos de carreira jurídica qual a sua avaliação desse momento político sob o ponto de vista jurídico?

Hamilton Dias de Souza: Eu comecei a trabalhar em 1966. O meu escritório, tal qual é hoje, foi fundado e registrado na OAB como pessoa jurídica em 1968. Tenho um longo tempo de advocacia praticante. Advoguei bastante na época da revolução [ditadura militar], advoguei contra o poder público intensamente no Supremo Tribunal Federal na década de 1970. Mas eu nunca vi nada parecido com o que temos hoje.


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O que tem de único essa situação que nós estamos vivendo?

O conflito entre poderes e o fato de que a classe política ocupou o Estado para si. O Estado é concebido e foi concebido para servir ao povo, a determinados princípios que informam a ação estatal. No artigo 37 da Constituição, quando fala em moralidade, impessoalidade esse é um princípio bastante importante. A finalidade de qualquer estatal tem que ser pública. Se um ato estatal tem uma finalidade não pública, ele é inválido e inconstitucional. Da mesma forma, se um ato é editado por razões pessoais, ele fere o princípio da impessoalidade. Um exemplo para não ficarmos em teorias: um político, um presidente da República, e eu não me refiro só a Bolsonaro, o assunto vai bem além dele. Mas falando dele, Bolsonaro tem tomado uma série de ações e atitudes voltadas para os próprios interesses dele.

Para tanto, ele promoveu, com a ajuda do Congresso Nacional, uma emenda constitucional que lhe permite aumentar doações no ano das eleições, o que é proibido por lei. Ele contornou a lei para um propósito exclusivo dele durante este ano e por um período que termina em 31 de dezembro. Isso é fraude à Constituição. A Constituição não pode ter determinados princípios, ela tem toda uma estrutura. Aí vem uma maioria episódica do Congresso Nacional, ditada por interesses deles, pelos congressistas, interesses eleitoreiros, e aprovam alguma coisa contra a razão de ser e os princípios que formam a Constituição. Evidente que isso não atende a fins públicos, há desvio de finalidade.

Essas pessoas podem ser condenadas depois? A administração Bolsonaro e os próprios congressistas? Isso dá margem para para julgamentos sobre essas possíveis ilegalidades. E quais seriam?

Quando se fala em condenação, nós temos de ter um ato previsto no Código Penal. Quando você tem atos políticos como esse, por exemplo, da emenda condicional, é altamente improvável que isso possa prosseguir. Eu digo isso porque a verdade é que a fórmula foi obedecida. Foi uma forma estranha de aprovação em dois terços e em horas de uma emenda constitucional, porque ela tem todo o regimento do Congresso, prevê um procedimento longo e em dois turnos. Isso, na verdade, foi atropelado. Não houve debate. O que houve foi um acordão e se resolveu dar este auxílio.

Não só esse auxílio dos R$ 400 para os R$600 e também a outras classes, como nós sabemos. Mas tudo isso em ano eleitoral vai provocar um rombo de R$ 41 bilhões e alguém vai ter que pagar a conta. No plano prático nós não temos condições econômicas de manter esse auxílio no ano que vem. Imagine você, aquele camarada que já está na miséria com R$ 400, ele passa a receber R$ 600, automaticamente a vida dele se organiza, mal ou bem, para R$ 600. Começa o ano que vem ele vai voltar para 400 e aí nós vamos ter um problema enorme de contas públicas. Isso é sindicável politicamente. Quando eu falo em sindicar politicamente isso significa que as urnas é que podem corrigir essas coisas.

Aproveitando o gancho, qual seria a legalidade do orçamento secreto? A Justiça poderia condenar as pessoas envolvidas em caso de alguma irregularidade?

O que nós podemos falar é que ele é inconstitucional por ferir o princípio da moralidade, porque a coisa pública tem de ser aberta a todos nós. Nós que pagamos e temos que sindicar os que nos representam. No momento em que há atos políticos secretos é evidente que isso fere o princípio da publicidade e o princípio da moralidade, expressamente descritos no artigo 37 da Constituição. Como é que alguém poderia ser punido penalmente por isso?

Pelos desvios, por dinheiro em beneficio próprio. Nós temos aí seguramente um orçamento secreto, com verbas destinadas pelos parlamentares de uma maneira, digamos, arbitrária e que podem fazer indicações arbitrárias. É claro que alguns podem ser honestos. Mas seguramente muitos estão se aproveitando. Aqueles que eventualmente estejam exorbitando e tirando vantagens disso poderão ser condenados.

Qual é hoje o risco de ruptura institucional?

Não acredito em ruptura institucional, acho que nós vamos ter uma tentativa. Vai ser muito difícil ruptura institucional com o país contra isso. Há um grupo querendo essa ruptura, mas é muito pequeno. Eu vivi a época de 1964 na faculdade de Direito do Largo São Francisco e a faculdade foi muito ativa. Havia, antes de 1964, uma ameaça a todos nós estudantes por parte de uma esquerda armada, perigosa. O Sindicato dos Metalúrgicos chegou a invadir a faculdade com barras de aço. Na época a população queria a ordem.

As instituições todas se ajustaram muito rapidamente [ao golpe], sobretudo com Castelo Branco. Na época todos falavam dele, como, não vou dizer um salvador, mas quase isso. Portanto, ele tinha uma adesão extraordinária da média do povo brasileiro, das famílias. Todo mundo sentia que havia uma imensa desordem e que, de repente, alguém que o povo confiava, não importa que foi através de golpe, como você diz. Claro que foi golpe, mas com uma adesão do povo aos quartéis, havia uma sensação de que aquilo era o que o país precisava. Agora nós temos o país dividido e eu vejo que os bolsonaristas são, de alguma forma, muito radicais. Diria que toda essa postura violenta, há uma violência das palavras.

Você pode perceber que muitas dessas pessoas usam de meios violentos, mas isso é um grupo pequeno. Não creio que ele tenha a adesão dos militares da reserva. Apesar de todas as vantagens que ele deu em termos de soldos, não creio que haja clima no Brasil para uma ruptura democrática. Vi agora essa fala para os embaixadores, que foi uma coisa bastante negativa para o país em termos de imagem. Mas você deve ter percebido que houve uma reação contrária.

Estados Unidos e Inglaterra, entre outros, se opõem claramente falando: nós acreditamos nas instituições e no sistema eleitoral brasileiro, nós não temos nenhuma queixa séria, nenhum fato comprovado de que ele tenha desvios. E lembramos que nas urnas não eletrônicas, sobretudo nos rincões do interior, aquilo lá se prestava a desvios de toda ordem.

Temos hoje um STF, existe essa polarização hoje do Supremo em relação ao governo Bolsonaro. Como é que se vê essa polarização? Qual é o papel das instituições do Judiciário nesse processo todo? E qual o risco que elas correm?

Hamilton Dias de Souza

Tudo isso começou no momento em que determinado juiz do Supremo Tribunal Federal começou a se julgar como um tribunal de princípios e, portanto, um tribunal que não deveria julgar a norma, mas deveria julgar as normas de acordo com os princípios. É um movimento chamado neoconstitucionalismo, alguns falam em neopositivismo. Isso significa que a corte não teria que ficar vendo regras constitucionais, mas os princípios funcionais e as regras constitucionais deveriam ser relidas em função de princípios.

Agora princípio são pautas de valores. As pautas de valores variam de pessoa para pessoa. Elas são muito flexíveis e dependem, portanto, de uma carga axiológica de cada um. Isso faz o quê? Cada um, ao julgar uma determinada regra, coloca uma carga inclusive emocional, começa a colocar o que ele pensa, independente do direito na análise da norma jurídica. No momento em que alguém faz isso e que eles começam a perceber que isso lhes dá um poder extraordinário para quase alterar a Constituição, para não dizer que às vezes altera, esta facção do Supremo que se estendeu por muitos deles, foi indo de tal forma que o povo começou a perceber que o Supremo estava extrapolando. Que o Supremo que podia tudo.

O STF pode muita coisa, mas não pode tudo isso. E o Supremo agiu como se pudesse absolutamente tudo. O grosso disso tem por volta de só dez anos. Me recordo perfeitamente que isso começou de uma forma discreta, foi crescendo e virou um instrumento de poder. Aliado ao ponto do neoconstitucionalismo, da utilização de conceitos abertos como moralidade, impessoalidade, finalidade e outros eles passaram a fazer cada um deles o que queriam e eles viraram legisladores.

Há uma relação de causa e efeito nessa história? Vemos que o Legislativo muitas vezes se omite em pautar e votar determinadas questões. O Supremo não estaria preenchendo esta lacuna?

Há sim uma relação de causa e efeito. No momento em que um poder abusa, os outros poderes começam a abusar também. Essa PEC atual [do auxílio emergencial] é inconstitucional, ela atropelou o regimento e mais ou menos agiu como o Supremo. Então, o abuso de um permite o abuso de outro. Por seu turno, tem os abusos do Executivo. É mais ou menos o seguinte: se um não respeita a separação de poderes - diz o outro agente público - porque eu vou respeitar? Portanto, eu acho que esse conflito extraordinário, nunca visto entre Poderes da República, está acontecendo, mas na gênese disso é muito difícil você não lembrar do que o Supremo Tribunal fez.

Como o senhor vê a postura do Arthur Lira nesse processo?

A postura do Lira é uma questão política. O Bolsonaro começou o governo dele dizendo que ele não se alinharia ao Congresso e que ele não faria troca-troca no Congresso. Até que sobreveio Lira e ele percebeu que sem o Congresso não alcançaria os objetivos dele. Passaram a fazer uma união Executivo-Legislativo. E o Lira hoje conseguiu, através seguramente de benesses que obteve em cargos no Executivo, um poder extraordinário no Congresso em que ele é praticamente um ditador. Outro dia, dizia um ex-presidente da Câmara dos Deputados que jamais houve um presidente com tanto poder. A relação de Bolsonaro e de Lira é uma ajuda mútua. O Lira legisla.

E qual a avaliação do Sr. da conduta do procurador-geral da República, Augusto Aras?

Não tenho visto, por parte do Aras ainda, uma conduta que alguém possa falar algo. Vejo que ele tem um viés óbvio pró Bolsonaro. Aras foi escolhido contra os seus colegas pelo presidente. O Aras é um homem razoável, mas não há a menor dúvida de que o viés dele a favor de Bolsonaro é grande. Está muito errado o sistema. Como é que o presidente da República vai ter um homem que vai fiscalizar os atos do Executivo, que é o dono da ação penal pública, nomeado pelo próprio chefe do Executivo? E quem é o culpado? O Congresso Nacional, que aprova tudo. A mesma coisa aconteceu com os ministros do Supremo Tribunal Federal.

Como o Sr. analisa a resposta das instituições brasileiras ao que está acontecendo?

A classe política tomou o Estado para si. Hoje os políticos agem em seu próprio favor. Eles, que nós pagamos para tomarem conta do país, tomam conta dos seus próprios interesses. Eu diria que as instituições estão em frangalhos, desacreditadas. Se nós olharmos para o povo e verificarmos o que o povo pensa do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, está a resposta. Há muitos que dizem: "o povo é analfabeto, o povo não entende", entende sim senhor.

O povo tem a percepção que hoje não podemos confiar no Estado. Quem confia no Estado? Quem confia na jurisprudência do tribunal que pode mudar? Quem confia na palavra de um governante? Quando se fala em boa fé objetiva, em que eu tenho o direito subjetivo público de confiar nos meus governantes, nos detentores do poder. Por exemplo, foi invocado o estado de emergência. Se eu pegar o artigo 136 da Constituição, que fala em estado de emergência, que diz levar ou restabelecer em locais restritos e determinados a ordem pública e a paz social, ameaçadas por grave e eminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções da natureza, calamidades da natureza.

A falta de combustível não tem nada a ver com isso. O que eu quero dizer é que os dispositivos constitucionais invocados, qualquer pessoa, não precisa ter formação jurídica, questiona, mas isso tem a ver com o fato.

O Sr. está querendo dizer que chegou-se a um tal ponto de cometimentos de ilegalidades no Brasil que é inédito na história do país, ou talvez nos últimos 50 anos, é isso?

Pela classe política em geral. Quando falo de Bolsonaro, ele é dono do processo não só político, mas da gestão econômica, que eu sou um crítico feroz e que acho que Paulo Guedes foi a enorme decepção do país. Prometeu e não entregou absolutamente nada. Deveria ter pego o chapéu e saído daquele cargo dele há muito tempo. Era um homem pelo menos bem sucedido. Falou, prometeu e não cumpriu. Eu sou crítico da classe política.

Não pense que com isso tudo que estou falando e o que eu falo, que penso que tem que mudar para alguma coisa, tipo o Lula. O que aconteceu no governo Lula, o que aconteceu no governo Dilma, os absurdos. O Lula foi condenado corretamente, ele teria sido condenado por qualquer juiz. Ele não foi condenado por um juiz suspeito. As provas contra ele, as denúncias feitas contra ele são claríssimas. Então, há um aspecto formal que eu, como advogado, respeito. Porém, pelo ângulo substancial, nós temos aí um outro candidato que também deixa a desejar.

E o outro candidato que, como disse a Dilma, fez o diabo para se reeleger e que é o que está acontecendo agora com o Bolsonaro. Estou muito descrente, muito receoso do futuro próximo do Brasil. Seja com um candidato ou com outro.

O que pode sair dessa história toda? Gosto sempre de saber qual a análise do entrevistado, como prevê o futuro baseado no contexto atual, por mais que isso seja algo bastante abstrato, que pode não se cumprir.

Vamos fazer dois cenários. Um em que as coisas continuam razoavelmente do mesmo jeito, com o Supremo Tribunal julgando da mesma forma e com um Congresso eventualmente quase sempre cooptado pelo Executivo. Se isso ocorrer, nós vamos continuar tendo o Estado tomado pelos políticos, como aconteceu praticamente em toda a América Latina. Na América Latina, houve esse movimento de uma democracia malfeita. Se você pegar países com condições econômicas que poderiam ser muito boas, a Venezuela no passado, a Bolívia, Argentina, agora até o Chile está tendo problemas.

A verdade é que as instituições na América Latina não estão funcionando bem. Eu acredito no regime democrático, mas o regime democrático para funcionar, tem que haver uma consciência clara, de forma que os poderes públicos, um fiscalize o outro. O que não pode haver um acordão entre todos, que ninguém fiscaliza ninguém, que de alguma forma é o que está acontecendo. Eu vejo a empresa Brasil muito mal administrada.

É como se eu tivesse um grupo de executivos que tivessem andando de jatinho da empresa, fazendo jantares e não cuidando da empresa ou do lucro da empresa. E na verdade os acionistas somos nós, povo. E se não recebermos os dividendos? [ele quer dizer o benefício, o Estado de bem-estar social]


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Estamos vendo várias manifestações pelo país contra a ruptura democrática. A faculdade de Direito da USP está com um manifesto contra a ruptura institucional. O Sr. que foi professor vai assinar?

Eu assinei esse documento com muito prazer. Acho uma excelente iniciativa e se nós olharmos a ordem constitucional já está sendo rompida. O Supremo extrapola suas funções, o Congresso Nacional abusa, como no caso das PECs, o presidente da República, em pleno processo eleitoral, contrariando a lei e a Constituição, vem agora ampliar vantagens. Tudo isso é o quê? É ruptura da ordem institucional. Acredito que o nosso sistema democrático é muito bom, mas digo ele que está disfuncional. As instituições democráticas estão mal funcionando. Então, se há algum documento a favor da ordem democrática é claro que eu devo apoiar.

Os aliados de Bolsonaro estão tentando blindá-lo para que ele não seja preso caso ele não seja reeleito. Quais foram as maiores ilegalidades que ele cometeu durante o mandato e que podem, inclusive, levá-lo à prisão?

Vou excluir da minha resposta a expressão prisão. Por quê? Uma coisa é ele, amanhã, ter um problema penal. Outra coisa é ele ser preso. Ele não será preso em flagrante delito. Portanto, excluído flagrante, ele pode ser processado criminalmente. Isso é fundamental em termos de processo penal. Não acredito em prisão, porém ele pode ser processado por uma série de eventos, sobretudo contra as instituições, como alguém que criou a organização de fake news. Me arrisco a dizer, sob o ponto de vista penal, é o que me parece mais evidente.

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