Inteligência artificial dá novo salto e ajuda a prescrever melhor tese para julgamento

Paula Oliveira - Crédito Divulgação
Paula Oliveira - Crédito Divulgação
Paula Oliveira, CEO da GoToData, afirma que algoritmos já auxiliam também na área de direito consultivo
Fecha de publicación: 30/10/2019

A inteligência artificial deu um salto na interação com o mundo do direito quando passou a ser capaz de interpretar os chamados dados não estruturados, como fotos, vídeos e textos, e hoje os sistemas conseguem até mesmo prescrever estratégias para um ou mais processos, afirma Paula Oliveira, CEO da GoToData.

Oliveira é graduada e mestre em estatística pela Universidade Federal de Minas Gerais. Obteve um MBA em Management pela Fundação Dom Cabral e um post MBA sobre o mesmo tema na Northwestern University - Kellogg School of Management. É doutora em psicologia das organizações e do trabalho, comportamento organizacional pela Universidade de São Paulo (USP).

Qual a importância da inteligência artificial para os advogados?

A utopia ou distopia do que se convencionou como conceito de Inteligência Artificial (IA) refere-se à tentativa de replicar, nos algoritmos e sistemas de informação, os mecanismos humanos de aprendizagem. No limite, tais sistemas seriam capazes de coletar, armazenar e processar dados, construir significado e agir de forma totalmente autônoma, ou seja, sem a supervisão ou interferência humana.

Nesse estágio, as nossas capacidades cognitivas estariam mimetizadas nas máquinas e, portanto, poderiam ser potencializadas ou substituídas por elas. Seria um processo análogo ao  provocado pela Revolução Industrial, porém, não em relação às nossas capacidades mecânicas e repetitivas, mas sim às intelectuais, repetitivas e complexas.

É bem verdade que esse nível de autonomia ainda está distante do que já foi possível concretizar em termos de IA. Porém, por outro lado, já transpusemos uma série de barreiras de conhecimento e tecnologia, nesse caminho. Já se tornou possível automatizar, potencializar e até substituir várias das atividades diárias dos profissionais do conhecimento, onde estão advogados, médicos, professores, jornalistas etc. 

Todas essas aplicações incitam mudanças drásticas no ensino e na prática do direito. Os advogados devem estar atentos a essas mudanças, já em curso no Brasil, e muito aceleradas no mundo internacional. 

Seja para se adaptar, ou para inovar, ou mesmo para acelerar a transformação do judiciário, uma coisa é certa, tais mudanças vieram para ficar e implicam num processo de aprendizagem híbrido e permanente entre advogados e máquinas. 

O que se espera é que tal processo seja sempre cooperativo! 

Quando pensamos em inteligência artificial e nessas mudanças, o que realmente já é possível aplicar no campo do direito? E como chegamos até aqui? 

Como estatística de informação, acredito que, no fim do dia, tudo o que vemos, lemos, escrevemos, falamos e até o que pensamos ou sentimos pode ser representado na forma de dados. Ora serão dados estruturados e quantitativos, tais como números em planilhas de excel; ora não estruturados, como as fotos, os vídeos, os áudios publicadas massivamente nos mais diversos espaços da web; ora semi-estruturados, compartilhados a partir de protocolos internacionais de comunicação. 

No campo do direito, há pelo menos uma década e meia, já é possível indexar, tipificar, categorizar de múltiplas formas, classificar, etc., os longos e exaustivos textos que circulam no judiciário. Sejam as iniciais, as leis, as medidas provisórias, as resoluções etc. Uma vez indexadas, essas peças e as informações nelas contidas podem ser usadas para produzir uma gama enorme de relatórios, análise retrospectivas, cruzamentos.

Mais recente, é também a possibilidade de analisar conjunta e simultaneamente, dados de natureza distintas, advindos de inúmeras origens e com destinos diversos. E-mails, posts, twittes, spams. Tudo junto, num único lugar e analisados simultaneamente para compreender, predizer e antever os fenômenos do mundo. No direito, as aplicações são diversas, desde historiar, sintetizar, analisar e até prescrever estratégias inteiras para um determinado processo, ou o conjunto deles.

O desenvolvimento de tecnologias que suportam essas aplicações caminha a passos largos. Porém, o nível de maturidade tecnológica dos algoritmos de IA ainda está distante do que seria necessário para recomendar uma reforma inteira. A novidade é que esse desafio, outrora considerado tecnologicamente impossível, passou ao status de tendência, incitando discussões éticas importantes. Ou seja, a fronteira para o desenvolvimento dessa abordagem deixou de ser tecnológica e tornou-se social, política e ética. 

Quais as questões éticas potencialmente envolvidas na aplicação de IA no direito? Como elas vêm sendo discutidas e quais os caminhos para resolvê-las? 

Essa é uma discussão ampla, transcende a tecnologia e a análise de dados propriamente ditas. Nos lados opostos dessa polêmica, um antigo dilema: deve a ciência investigar, orientar-se, limitar-se pelo potencial de aplicação das suas descobertas? Ou a ciência e a técnica devem manter-se em caminhos paralelos? 

Tão proeminente quanto as especulações sobre o potencial devastador da energia nuclear,  que fizeram emergir as discussões sobre os limites éticos dos cientistas quando a desenvolveram, está a discussão sobre o futuro de IA, no que tange aos graus de liberdade ou  à autonomia dos algoritmos.

Algumas vozes importantes da economia, da política e da ciência argumentam, veementemente, que, no limite, os algoritmos de IA poderão ter consciência, além de uma capacidade imensurável de coleta, armazenamento e processamento de dados. Com essas capacidades em conjunto, robôs e sistemas estariam prontos para fazer suas próprias escolhas. E tendo aprendido com os seres humanos, teriam também a necessidade de lutar pela sobrevivência. Se em conjunto conosco no planeta Terra ou não, segundo tais lideranças, seria melhor não arriscar, sob pena de tornar o processo irreversível. 

Bem mais próximos e com efeitos já sentidos na prática, estão os algoritmos que utilizam dados históricos para predizer penas, tratamentos, risco, crédito etc. Por utilizarem dados históricos para aprender, tais algoritmos herdam todos os atributos sociais, culturais, econômicos etc que balizaram a geração de tais dados. Sendo assim, os vieses e preconceitos de raça, condição social, gênero, dentre tantos outros, estarão presentes nos conjuntos de dados da mesma forma sutil como estão na nossa sociedade. 

Nos Estados Unidos, já há casos emblemáticos em que se usaram os dados sobre recorrência, perfil dos réus, dados históricos. Os negros, de acordo com as análises desses dados, ficaram com probabilidade maior de recorrência, com pena maior, sem levar em conta os atributos do crime. Concluíram então que, por conta do vício dos algoritmos, estavam perpetuando a condição. 

O negro seria estigmatizado no sistema judiciário e teriam penas acrescidas. Por isso, o algoritmo foi proibido. Os algoritmos viciados usam base histórica, o que é muito grave. Sabemos que os dados têm vieses da cultura, sociais, financeiros, e o que fazemos para minimizar os vícios é criar outro algoritmo que reduzirá a importância dos vieses na amostra, é algo que está começando a ser usado como contramedida. 

A criação do novo algoritmo para prescrever teses que passarão pelo olhar humano antes de serem utilizadas está indo bem. O judiciário pode se beneficiar desta tecnologia, mas, na hora da sentença, é preciso cautela. Ainda não estamos neste nível de maturidade, em nenhum lugar do mundo. 

A IA pode substituir um advogado ou o setor jurídico de uma empresa?

Nos últimos 5 anos, foram oferecidas soluções mais rasas no judiciário: quantos processos de cada tipo, teses, resultados dos processos. Agora, já é possível analisar um processo novo com Machine Learning, como se processasse a linguagem como dado.

O Machine Learning tem a autonomia da própria máquina, não precisa de uma equação pronta, ou de estímulo humano. A partir da coleta de dados, o próprio algoritmo aprende. Já é possível analisar todo esse estoque de processos, todo o arsenal que a empresa tem e começar a prescrever teses para os novos processos, já sabendo a probabilidade de sucesso em determinada tese, em determinada vara, com determinado juiz. 

Talvez, já se consiga prever até uma estratégia de defesa e de argumentação inteira a partir do aprendizado anterior, para advogados que tenham atributos semelhantes, em varas que tenham juízes semelhantes. São inúmeras as variáveis que podem ser levadas em consideração, ao mesmo tempo.

Os empregos típicos nesse campo, especialmente os que se referem ao início de carreira, serão reduzidos e parcialmente substituídos por algoritmos capazes de analisar, organizar, classificar e, frequentemente, recomendar teses e estratégias processuais. Com os algoritmos de deep learning, isso já é possível atualmente. Já a prática consultiva, ancorada na experiência profissional e na empatia com os clientes, deve crescer então.

Como convencer o advogado a adotar essa tecnologia?

Uma coisa que tem dado muito certo é buscar exemplos de outras áreas. Quando falamos de predição, a questão meteorológica não é tão dramática. Eles têm um nível de precisão que é bem razoável, faz parte do cotidiano deles. Eles usam dados históricos. Se é possível fazer na meteorologia, por que não é possível fazer no direito?

Um juiz com determinados traços, por exemplo, com determinada atividade na instituição em que atua, até seu comportamento em redes sociais, tudo isso vira dado. Considerar todos esses dados no algoritmo é muito mais fácil, porque tudo é quantificável. Para convencer o dono do escritório, é um discurso muito válido e tem dado certo. 

Há também um frenesi em relação às redes sociais. Então, quer dizer que se eu tiver um colaborador que quer promover uma ação trabalhista depois que saiu, posso scrapear tudo que disse nas redes sociais? Pegar o que ele disse a respeito da empresa e usar no processo? Por enquanto sim, porque a Lei Geral de Proteção de Dados não está vigente. Se for para um ser humano fazer isso em todos os processos, assim como nós buscamos nas redes sociais, é impossível. 

No entanto, via algoritmos, é plenamente possível, e a coleta em si demora segundos. O fundador ou dono vai ganhar performance. Quem executa, quem está à frente da ação, poderia resistir. São duas as estratégias, boa parte do movimento é por insegurança, boa parte é reserva de mercado. Consideradas as duas coisas, conseguimos o diálogo pelo simples motivo de que ele também consegue usar isso a favor dele. 

E com os advogados mais jovens?

Temos conseguido reduzir as resistências mostrando que a parte invisível não é estatística ou matemática, mas um aplicativo como o do banco. O advogado ainda deve resistir durante muito tempo, mas vem uma nova onda e que, por incrível que pareça, torna os profissionais mais experientes, e começam a sentir que perdem concorrência dentro da empresa. 

Na outra ponta, como funciona para o poder público? Cada ministro do STJ possui 10 mil processos em estoque no gabinete…

Podemos reduzir e tornar muito mais eficientes as análises processuais, porém, acredito que sempre caberá ao ser humano a crítica reflexiva a esse respeito. Nós estamos falando de margem de erro. Para a grande maioria dos processos é possível aplicar a IA, mas pode ser que alguns tenham características novas que não consigamos incorporar como linguagem dentro dos algoritmos. 

Quando falamos de máquina, pensamos no computador em si. Já Machine Learning são sistemas. Havia uma dificuldade de lidar com dado não estruturado. O dado na forma de vídeo, imagem estática e texto é recente. Agora nós somos capazes de processar as imagens, os vídeos, e ainda conseguimos alinhar dado estruturado com o não estruturado e usar tudo para descrever o fenômeno.

Há um ano e meio, eu fiz um estudo. O juiz da primeira instância deu uma sentença, o reclamante recorreu à segunda instância, a turma deu um acórdão e a pessoa recorreu à terceira e última instância. Vamos supor que alguém usou essa previsão de percorrer todas as instâncias. A taxa de sentença que muda em relação à primeira instância é alta. Como o judiciário poderia se beneficiar? Do mesmo jeito que o escritório de advocacia. Fiz uma pergunta para um juiz, se tem jurisprudência, por que chega na terceira instância? Assim, descobri que muitas vezes o juiz nem sabe que existe jurisprudência. Além disso, existem as ideologias que orientam a cabeça dos juízes, que vão fazer resistir. As soluções são as mesmas, as resistências também. 

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