A advogada Márcia Rocha é uma dessas profissionais que milita para a inclusão de mais pessoas LGBTQIA+ no mercado jurídico do Brasil e da América Latina. Ela faz parte do Comitê de Diversidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo e conseguiu algo que abriu um caminho importante para outras pessoas trans na carreira legal: foi a primeira mulher trans a ter o direito de ser reconhecida pelo nome social na entidade em 2017.
O pedido foi feito em 2014 e demorou três anos para que fosse reconhecido nas instâncias superiores. Ela conta que as dúvidas na época eram sobre a validade jurídica da mudança e como isso seria feito na carteira da OAB. Depois desse último obstáculo, a aprovação aconteceu, por unanimidade, no Conselho Federal da entidade. Logo depois mais de 30 pessoas trans fizeram o pedido.
O caso dela também influenciou outra decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu, em março de 2018, que pessoas trans que desejam alterar o nome e gênero de registro em sua documentação de nascimento pelo nome social podem procurar qualquer cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais do Brasil sem a presença de autorização judicial, laudo médico ou cirurgia de comprovação de redesignação sexual. A maioria dos ministros invocou o princípio da dignidade humana para assegurar o direito. Antes o processo enfrentava uma longa espera pela decisão judicial.
Márcia é advogada imobiliária e se assumiu trans depois dos 40 anos, quando começou o processo de transição. No Tribunal de Justiça de São Paulo, ela foi a primeira advogada transexual a fazer uma sustentação oral, no caso envolvendo a cartunista também trans Laerte.
Márcia Rocha se tornou ativista pelos direitos humanos e criou o TransEmpregos que é o maior banco de dados e currículos de vagas para pessoas trans no país. Ela não para de trabalhar, mas sabe que ainda é exceção no mundo de pessoas trans que advogam.
Hoje a advogada, além de dar aulas e assumir alguns processos, faz palestras por todo país falando da importância da inclusão no mercado de trabalho. Confira a entrevista.
Estamos no mês do Orgulho LGBTQIA+ e essa é uma discussão importante não só nesse mês, mas ao longo de todo o ano. O Brasil tem fama de ser o país que mais mata pessoas trans no mundo. Quais são as barreiras que as pessoas trans têm enfrentado?
Eu até acredito que o Brasil possa ser o país que mais mata pessoas LGBT no mundo, até porque ele é o país que mais mata policiais, negros, o terceiro país que mais mata mulheres, é um dos países que mais mata crianças e índios. A violência que existe no país é muito grande, mas nós precisaríamos de uma estatística mais confiável para poder fazer essa afirmação sem medo.
Mas eu sei que o Brasil não é o pior do mundo para LGBTs. Temos, por exemplo, a Arábia Saudita, onde não posso ir porque estaria sujeita a ser presa. A homossexualidade é crime em 70 países do mundo. Mesmo que o Brasil seja o país que mais mata trans, há outros que são muito piores.
Há lugares do planeta que não posso nem sequer andar na rua, sequer existir. Eles não são melhores que o Brasil, onde há violência, mas posso me expor. Meu dia a dia é de risco, para eu ir na padaria não é simplesmente comprar pão, porque estou em um ativismo existencial constante.
Como foi o desafio, lá em 2014, de pedir à OAB o reconhecimento do nome social como advogada?
Vivenciar essa mudança toda foi muito marcante. Em 2007 entrei no ativismo e comecei a participar de reuniões sociais. Na época, eram poucos os trabalhos acadêmicos publicados, principalmente na área do direito. E nós não tínhamos direito a praticamente nada. Todos nossos direitos foram conquistados no Judiciário, principalmente a partir de 2011, com a questão da união estável que foi convertida em casamento, a questão do nome social e o direito de retificar o nome e o sexo no documento diretamente no cartório, sem necessidade de judicialização. Tivemos direito à adoção e de doar sangue, mas ainda falta - está no Supremo para ser julgado - o direito a ir ao banheiro público.
Como está essa luta de pessoas trans pelo uso do banheiro?
Usamos o banheiro de acordo com o gênero. A lei não diz: apenas pessoas biologicamente masculinas podem usar o banheiro masculino e apenas pessoas biologicamente femininas podem usar o banheiro feminino. Até porque você teria que fazer um exame de DNA em cada pessoa. Que diferença faz?
A PUC, onde eu estudei aqui em São Paulo, hoje tem banheiro misto. Tem o masculino, tem o feminino e tem o misto. O que estiver mais perto vai, não importa se é homem ou mulher. A pergunta que eu faço sempre quando falo desse assunto: onde é o banheiro feminino e masculino na sua casa? São questões que mexem no simbólico das pessoas, mas que não tem sentido.
Se decidirem que eu não posso usar o vestiário feminino, eu vou em qual? No masculino? No vestiário feminino tem cabines para você se fechar, no masculino não tem. Se for no masculino vou me expor. As pessoas vão me ver, tenho corpo feminino. São questões que o mundo não está preparado, mas que são simples de resolver.
O mercado de trabalho está mais aberto a pessoas trans?
Há dez anos quase não víamos pessoas trans na universidade e nas empresas trabalhando. Criei o projeto TransEmpregos, que ajuda pessoas trans a se inserir no mercado de trabalho. No ano passado, com crise e pandemia, 707 pessoas trans foram contratadas. Hoje praticamente todas as multinacionais e grandes corporações que atuam no Brasil ou brasileiras têm pessoas trans trabalhando. Algumas pagam a transição. São poucas, mas existem. Hoje o TransEmpregos está chegando a 970 empresas parceiras: 100 multinacionais e 870 nacionais.
Como está a empregabilidade no mundo jurídico?
Houve um boom muito grande de pessoas se assumindo depois que consegui o direito ao nome social. Hoje praticamente todos os grandes escritórios de São Paulo têm trans trabalhando. Eles têm contratado mais, mas é um volume pequeno. Tenho alguns retornos de alguns casos mais icônicos, notórios, dentro do Direito, onde atuaram pessoas trans. Mas a grande maioria ainda tem muita dificuldade de exercer a profissão, que já é difícil pra todo mundo. É uma área difícil para quem é autônomo e precisa ter a credibilidade do cliente. Não é uma área fácil para uma pessoa que tem o estigma associado à sua imagem.
E nos tribunais, como está a situação? A senhora quando entra em um tribunal, qual era a reação em 2014 e qual é hoje? Mudou alguma coisa, ainda existe muito preconceito?
Depende muito. Eu atuo em São Paulo, o estado tem a Lei nº 10.948 de 2001 que garante o direito de LGBTQIA+ frequentarem qualquer ambiente, principalmente repartições públicas. Sempre senti uma preocupação muito grande quando vou em delegacias, cartórios e no Fórum. As pessoas têm uma preocupação em não discriminar, porque existe uma lei que a pune administrativamente.
Mas tive algumas situações um pouco constrangedoras, outras até hilárias. Já me passaram na frente em fila, acho que justamente por medo, para que eu fosse bem tratada. Tive uma questão numa delegacia uma vez de discriminação. Usei a Lei nº10.948 e a pessoa foi devidamente punida, com uma advertência formal do Estado de São Paulo. Às vezes entrava em uma sala de juiz, antes da pandemia, e ele às vezes tomava um susto, mas me atendia bem.
Fui a primeira trans a fazer uma sustentação oral no Tribunal de Justiça de São Paulo, no caso de Laerte Coutinho. [No processo, o jornalista Reinaldo Azevedo, a Editora Abril e a Rádio Jovem Pan foram condenados a indenizar a cartunista Laerte Coutinho em R$ 100 mil. O jornalista chamou a cartunista de “baranga moral” em 2016. Ele criticou o posicionamento de Laerte contra o golpe contra a presidente Dilma].
Em alguns casos que atuei já senti um pouco de, não vou dizer preconceito, mas uma dúvida da pessoa, que é preconceito, se eu estava ali realmente habilitada, se eu tinha a competência para estar ali. Demonstrei que sim e tudo bem, é um direito do juiz, desde que ele não prejudique meu cliente por eu ser quem sou.
Como está hoje a situação das pessoas trans em outros países da América Latina?
Não conheço profundamente a legislação de todos os países da América Latina. Posso falar das minhas experiências como trans andando nas ruas da Argentina e do México. O México foi, para mim, o pior lugar. Quase sofri violência gratuita dentro de um restaurante. Paguei a conta e estava saindo. Um homem me viu, levantou e veio gritar comigo. Quase me agrediu fisicamente. Os garçons chegaram perto e ele não encostou em mim. Passei direto e fingi que não era comigo, fui embora. Mas ele veio para me bater.
É algo que eu nunca passei em lugar nenhum. Na Argentina vi alguns sorrisos, mas não tive problemas. Isso no Brasil nunca aconteceu dessa forma. Tive algumas situações esporádicas, mas nada tão agressivo. Em outras regiões do mundo, como na Rússia, fui parada pela polícia na imigração.
Pensamos que o Brasil é o pior país do mundo nesta questão, mas isso não é verdade. Precisamos ter um pouco de perspectiva das conquistas brasileiras. Em termos de direitos, estamos equiparados aos países mais avançados.
Qual era o lugar de fala da pessoa trans há algumas décadas e qual é nos dias de hoje?
Eu sou trans desde a primeira infância, quando me identificava com as meninas. Nessa época fui orientada, por ser menino, que deveria ficar com os meninos. Isso ficou guardado em mim. Fui levando uma vida dupla, sem poder expressar publicamente o que sentia. Mas com 13 anos comecei a tomar hormônio por conta própria. Meus seios começaram a crescer e meu pai descobriu. Ele me levou ao médico e me convenceu a parar.
Terminei o colegial, entrei na faculdade de Direito, trabalhei em uma das maiores imobiliárias do Brasil, fui morar fora, voltei, montei empresas e hoje sou empresária. Mas aquele dia que meu pai e o médico me convenceram a parar, se eu tivesse decidido continuar com a hormonização, provavelmente não teria me formado: não teria acabado o colegial, entrado na faculdade nem me formado. Era época regime militar, talvez não estivesse nem viva. Hoje vejo o quanto o preconceito é nocivo.
Há algumas décadas a fala das pessoas trans era inexistente, muda, não tínhamos esse direito. Não podíamos sequer ter o direito a existir e andar na rua.
Quando entrei no ativismo a sigla era GLS: gays, lésbicas e simpatizantes - trans nem entrava. Depois de GLS virou LGBT, depois LGBTQIA+. Identidades foram sendo reconhecidas e tendo voz desde então.
Quais são as discussões que precisam avançar?
Acho que precisamos, enquanto país, achar um rumo. Vamos ter dentro de um ano eleições e vamos estar absolutamente destruídos. Já estamos, mas vai piorar, infelizmente, por incompetência pura deste governo negacionista. Precisamos reconstruir este país em todos os sentidos: econômico, de empregabilidade e de valores, preservar a natureza, os índios e os direitos humanos. Nesta reconstrução, espero que possamos ter mais inclusão e mais reconhecimento da diversidade em todos os campos.
Deixe uma mensagem para as pessoas trans que estão enfrentando dificuldades.
É muito difícil ser quem somos, não é fácil. Não temos escolha, não existe escolha. O que eu digo para elas sempre é para ter paciência. O mundo não está preparado para nós. É preciso ensinar, educar e tentar ser a melhor pessoa que pudermos. É importante falar que as pessoas trans podem ser produtivas, honestas, corretas - isso ajuda a diminuir o preconceito, estigma que recai sobre nós.
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