“O Brasil tem planos sofisticados em várias áreas, mas muitas vezes pecamos na implementação”

“Hoje não há país que possa se desenvolver sem ter um posicionamento claro com relação à inteligência artificial”
“Hoje não há país que possa se desenvolver sem ter um posicionamento claro com relação à inteligência artificial”
Ronaldo Lemos, um dos advogados mais ativos do país na implementação de políticas públicas e regulação na área de tecnologia, fala sobre a necessidade de o país se preparar para ser protagonista no setor.
Fecha de publicación: 05/10/2020

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Ele é um dos principais criadores do Marco Civil da Internet e do Plano Nacional de Internet das Coisas e coordenou a equipe acadêmica que auxiliou o Governo federal em consultas públicas sobre Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a reforma da Lei de Direitos Autorais. O advogado Ronaldo Lemos é respeitado no cenário internacional por sua forte atuação em temas relacionados à tecnologia, propriedade intelectual, proteção de dados, mídia e políticas públicas.

O advogado é cofundador e cientista chefe do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), um dos principais polos de inovação do país. Com graduação e doutorado pela USP e mestrado pela Universidade de Harvard, Ronaldo Lemos é professor da Faculdade de Direito da Uerj e de duas universidades nas maiores economias do mundo: Columbia, em Nova York e Tsinghua em Pequim, país que ele vai várias vezes por ano para missões do ITS com investidores e empresários.

Ele ainda é apresentador da TV Globo, colunista da Folha de S. Paulo e foi apontado em 2015 pelo Fórum Econômico Mundial como um dos "jovens líderes globais". O autor de diversos livros, artigos e pareceres publicados no Brasil e no exterior sobre direito e tecnologia conversou com LexLatin, discutiu os avanços que estão por vir e a necessidade do Brasil ser protagonista no setor.  

Os dados de milhões de usuários são o novo ouro, o novo petróleo do capitalismo. A promulgação da LGPD é um marco histórico no Brasil, como foi o Código de Defesa do Consumidor (CDC) lá em 1990? Vai mudar as relações e o uso de dados?

RL: De fato a LGPD muda tudo, porque tem o papel de ser aplicada em todos os ramos e todas as atividades econômicas e governamentais e uma importância que é comparável ao CDC. Ela tem impacto transversal porque cerca todas as atividades no mundo contemporâneo.

Hoje até as lojas mais pequenas, o comércio modesto na rua da cidade em geral tem utilizado dados de alguma maneira. Então de fato é uma lei de uma aplicação muito ampla e, pelas indicações que a gente vem tendo nos últimos dias, é uma lei que pegou.

O que muda na relação do consumidor e das empresas com a LGPD?

RL: Muda tudo. Não é permitido mais no Brasil fazer tratamento de dados sem uma fundamentação jurídica, que pode ser o consentimento, o cumprimento de um contrato, a realização de uma política pública, mas ela precisa existir. Para o consumidor cria-se um novo hall de direitos que permite acessar os dados dele. O consumidor pode pedir para retificar e a qualquer momento revogar o consentimento que deu.

A lei precisa ser vista contendo dois objetivos: um deles é a proteção de direitos  e o segundo como um instrumento de fomento à inovação, no sentido de que a LGPD cria as regras do jogo para quem quiser trabalhar com dados. Uma vez que sejam cumpridas, as empresas também têm que se sentir livres para inovar e tocar seus negócios e empreendimentos, inclusive inovadores, sem ter preocupações. Temos que lutar para que a LGPD alcance esses dois objetivos dando segurança jurídica para as empresas. 

Você é um dos principais idealizadores do Plano Nacional de Internet das Coisas. Em pouco tempo teremos a tecnologia 5G que permite uma expansão desse conceito. Como a sociedade brasileira e os órgãos reguladores devem se preparar?

RL: A internet das coisas é o futuro, então estamos vendo cada vez mais os objetos conectados à internet e esses objetos vão desdes coisas simples, como caixa de som ou o próprio celular, até coisas mais complexas como infraestrutura conectada, como o transporte público conectado, a rede elétrica e assim por diante. Então a internet das coisas pode dar muita eficiência, especialmente em um país como Brasil que tem muito a avançar em questão de eficiência.

O 5G é outro desafio fundamental porque o Brasil deve trabalhar para ter o 5G o mais rápido possível. Acho que estamos demorando muito para tomar decisões necessárias para o 5G chegar. E se demoramos muito perdemos o maior valor dessa tecnologia: se você tem primeiro consegue um ambiente para o desenvolvimento de aplicações e produtos baseados em 5G que depois podem ser vendidos inclusive no mundo todo. Se o Brasil demora, esses produtos vão ser desenvolvidos em outros países, os que chegaram primeiro.

O leilão deveria ter acontecido com o Brasil tendo uma posição mais clara, até para permitir investimentos, porque se você fica nesse ambiente de incertezas afasta o investidor. Com relação ao plano de internet das coisas, felizmente ele foi construído e implementado por meio de um decreto federal.

Ronaldo Lemos

Somos ótimos de fazer planos, o Brasil tem planos sofisticados em várias áreas, mas muitas vezes pecamos na implementação deles e eu estou trabalhando com varias outras pessoas para que o Plano Nacional de Internet das Coisas (IoT não seja só um plano, mas algo com impacto para política industrial no país. 

Você é um dos principais idealizadores do Marco Civil da Internet. Ela foi promulgada lá em 2014 e temos outras leis anteriores. Como é que você vê a hoje a regulação da internet no Brasil? Atende plenamente a evolução da tecnologia no nosso país ou tem falhas e precisamos avançar?

RL: O Marco Civil é ainda hoje uma legislação muito moderna que dá os fundamentos da rede no Brasil. Todos os princípios continuam extremamente importantes, fortes e necessários. A rede evolui e os problemas mudam. O Marco Civil não tratava, por exemplo, da questão de dados de forma abrangente, então foi preciso fazer uma lei de dados.

Agora está se discutindo a Lei das Fake News que está em debate no Congresso. Acho que é uma legislação muito problemática, acompanho de perto os debates e acredito que o Brasil ainda tem arestas para serem aparadas, como um plano nacional de inteligência artificial.

Hoje não há país que possa se desenvolver sem ter um posicionamento claro com relação à inteligência artificial e são muitos os países que têm: Inglaterra, Canadá, Arábia Saudita e Singapura têm e o Brasil ainda não. Temos que nos posicionar para usar  a inteligência artificial como ferramenta para o desenvolvimento do país.

Quais são três principais pontos na regulação da inteligência artificial? O que o Congresso, legisladores e a sociedade precisam priorizar? 

RL: Primeiro é a promoção do acesso à informação pública. Em todos os países que você tem I.A. forte isso significa que você tem banco de dados que podem ser utilizados para treinar os algoritmos de I.A. Na Europa, o arquivo do Parlamento Europeu foi usado para treinar os sistemas de tradução de um idioma para outro, usando I.A., porque esses arquivos eram escritos em vários idiomas.

O Brasil tem repositórios públicos muito importantes. É o caso do Poder Judiciário. É preciso garantir que esses repositórios estejam abertos a consultas, possibilidade de uso inclusive para essa questão de aprendizado de máquina. O Poder Judiciário, vale notar, é no Brasil o que está mais avançado no uso de I.A.

Em segundo lugar fazer parcerias entre setor privado e academia criando possibilidade de cooperação entre empresas e os acadêmicos que trabalham I.A. E o terceiro é ter uma política financeira de apoio e inclusive de crédito para projetos de I.A.

Um documentário da Netflix, The Social Dilemma (O Dilema das Redes, em português) tem gerado discussão no meio acadêmico e fora dele. Como você analisa as questões que são discutidas nele?

RL: O documentário tocou num nervo. Teve quem assistiu e ficou revoltado com as empresas de tecnologia e teve gente quem assistiu e ficou revoltado com o próprio documentário.

 

Isso mostra que, do ponto de vista do direito, precisamos promover uma internet que atinja o seu potencial pleno, que seja uma ferramenta de desenvolvimento para o setor privado e de desenvolvimento para o setor científico, educacional e público.

 

No dia que tivermos uma internet equilibrada, em que não só o setor privado tenha uma equivalência, mas que a gente consiga usar isso para ciência e para educação, acho que estaremos no caminho certo. 

 

Você faz parte também do Conselho Nacional de Combate à Pirataria. Como você vê o posicionamento do nosso país em relação a essa questão?

 

RL: O Brasil é um dos países que mais investem no planeta no combate à pirataria. A própria existência do Conselho Nacional do Combate à pirataria é um exemplo muito claro disso. Então quando você olha as campanhas, o investimento até das forças policiais, das batidas, etc, o Brasil tem uma trajetória muito forte de combate à pirataria se comparado inclusive aos países aqui da região.

 

Temos avanços nessa área e importa muito o desenvolvimento de tecnologias locais. Um objetivo que temos é promover e fomentar a tecnologia legitimamente brasileira. 

 

Você dá aula na Columbia University em Nova York e também na universidade chinesa de Tsinghua em Pequim. O que essa experiência ajuda no debate político, nas questões de regulação da internet, políticas públicas para o setor e para a chegada dessas novas tecnologias?

 

Ronaldo Lemos

RL: É uma experiência importante, porque eu estou com um pé em cada lado do mundo e isso tem me dado a oportunidade de observar as questões que estão acontecendo no Ocidente e Oriente. Tem sido fundamental. Observo muito o ambiente de negócios nos EUA e na China e vejo como a tecnologia se transformou no elemento central inclusive na disputa comercial entre os dois países. A tecnologia, enquanto força internacional e de desenvolvimento nacional, vai ser o elemento chave para todos os países pelos próximos anos e até décadas.

 

Como voce analisa o uso da tecnologia nas próximas eleições, a disseminação das fake news para criação de polarizações dentro e fora da internet? Como sente esse ambiente hostil criado com ajuda das novas tecnologias e das redes sociais e o que precisamos debater e regular em relação a essas questões?

 

RL: O Brasil está discutindo hoje o Projeto de Lei de Fake News. Acho que o que está tramitando no Congresso não é bom e tem uma série de problemas. Temos que combater o financiamento e quem financia de forma oculta campanhas de desinformação.

 

Sou contra combater o conteúdo em si, porque você tem que atacar a raiz do problema e não as folhas. Temos de ir atrás dessas campanhas muito bem financiadas de forma oculta, que dão a impressão de ter milhões de pessoas falando sobre um assunto, mas que na verdade é uma pessoa só ou um grupo organizado que usam robôs e outras estratégias que são caras. O projeto tem que focar no "follow the money" ir atrás de onde vem os recursos para este tipo de atividade. 

 

Você é um dos fundadores do Instituto de Tecnologia do Rio de Janeiro, o ITS. Qual é a importância e a atuação dele neste momento?

 

RL: Ele é o maior instituto do Brasil que trabalha com o tema de tecnologia e sociedade. Temos um programa de capacitação para todos que querem trabalhar nesta área, inclusive uma pós-graduação em direito digital, que apesar do nome é aberta para profissionais de todas as áreas e não só do direito. Temos hoje lista de espera e fazemos isso em parceira com a Uerj: o diploma é tanto do ITS quanto da Uerj.

 

As pessoas querem cada vez mais se capacitar nessa área de tecnologia e o ITS é talvez a instituição que lidera essa capacitação para quem quer operar com tecnologia do ponto de vista do direito e das políticas públicas, não só no país, mas fora também.

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