O avanço da tecnologia e das redes sociais trouxe novos desafios ao mundo da propriedade intelectual na América Latina, porque estabeleceu novas regras de comércio. Uma das principais mudanças é o custo a ser pago, principalmente pelos países em desenvolvimento, em relação à transferência de recursos para o exterior, notadamente nações mais ricas onde estão a maioria das principais empresas de tecnologia do mundo.
Uma questão que preocupa é o surgimento de barreiras ao livre fluxo da informação, uma espécie de "apartheid tecnológico", separando detentores e consumidores de alta tecnologia.
Para os especialistas, a mudança de atitude em relação a essa nova ordem tecnológica mundial precisa começar em cada país e não como algo de fora. Assim, é preciso unir forças num programa regional de cooperação.
Para falar deste e de outros assuntos LexLatin foi até São Paulo conversar com Elisabeth Siemsen, sócia do escritório brasileiro Dannemann Siemsen e presidente da Associação Interamericana de Propriedade Intelectual (ASIPI).
Fundada há 57 anos, a ASIPI é uma das principais associações de profissionais da propriedade intelectual do mundo. O objetivo é a proteção, incentivo e fortalecimento da propriedade intelectual, o que inclui marcas, patentes, desenhos industriais, denominações de origem e obras protegidas por direitos autorais.
A ASIPI tem uma relação importante com escritórios de propriedade intelectual e entidades governamentais com competência nas áreas de inovação, investimento, cultura, entre outros, bem como órgãos judiciais como tribunais e ministérios públicos para colaboração acadêmica e de formação.
Elisabeth Siemsen é a segunda mulher da história a ocupar o cargo (a primeira brasileira) e está deixando a associação agora em dezembro. Numa conversa com LexLatin gravada na sede do Dannemann Siemsen (clique aqui para acompanhar em vídeo), ela falou sobre os desafios do mercado latino americano hoje e nos próximos anos. Acompanhe.
Luciano Teixeira: Qual a importância que a propriedade intelectual tem hoje no mundo dos negócios na América Latina?
Elisabeth Siemsen: Proteger a exclusividade e garantir a inovação, o que vem melhorando substancialmente na nossa região.
LT: Existe uma integração real hoje para o desenvolvimento da propriedade intelectual na América Latina que possa resultar em desenvolvimento econômico para a região?
ES: Na América Latina nós temos a discussão sobre a implementação do Prosur, o Mercosur, que não andou muito na área de propriedade intelectual, e o Pacto Andino. Justamente falando nessa parte de economia que você me perguntou, em 2016 e 2019, a ASIPI e a INTA trabalharam de forma conjunta na elaboração de um estudo que eu considero bastante importante, focado em determinar a relevância que têm as marcas nas economias nacionais dos países da América Latina.
Em 2019, apresentamos a segunda edição desse estudo: "Las marcas en América Latina: estudio del impacto económico en 10 países de la región". Esses países foram: Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Guatemala, México, Panamá, Peru e República Dominicana. A conclusão geral do estudo confirmou que as marcas impulsionam a economia e o desenvolvimento. Nós constatamos que o emprego, a massa salarial, o Produto Interno Bruto (PIB) e o comércio exterior de todos os países estudados são impactados positivamente pelo sistema de marcas.
LT: A prestação de serviços de propriedade intelectual continua sendo feita por firmas especializadas ou hoje é algo que está acontecendo mais com firmas generalistas?
ES: Acompanhando a evolução tecnológica e a complexidade dos assuntos que vêm sendo tratados na área de propriedade intelectual, entendo que a prestação de serviços por firmas especializadas será cada vez mais necessária. Acredito que a busca por esse tipo de serviço especializado vai crescer muito.
LT: Sua presidência coincidiu com a pandemia. Quais foram os desafios que vocês tiveram que enfrentar nesses quase dois anos de pandemia, aqui no Brasil e na América Latina, dentro da ASIPI?
ES: Ninguém esperava por isso. Ninguém sabia o que ia acontecer em 2020. O mundo mudou drasticamente com o surgimento de uma pandemia que não estava no radar de ninguém. Todos os países e todos os grupos sociais foram afetados, inclusive nossos associados. De uma forma ou de outra, todos sofremos com a Covid-19 e tivemos perdas. Isso é indiscutível.
Foram tempos super desafiadores e a pandemia nos forçou a realizar os eventos e operações da Associação de modo online, assim de um dia para o outro. A ASIPI, então, teve que se reinventar. Tivemos que liderar as mudanças assim com o avião em pleno voo, com o desafio de seguir cumprindo os objetivos da associação de incentivar e de manter os integrantes conectados entre si e com a comunidade global de PI.
As novas tecnologias foram vitais para permitir que todas as nossas atividades passassem a ser desempenhadas em plataformas digitais. Olhando para trás, a despeito de todas as adversidades, considero que tivemos bastante sucesso. A ASIPI continua ativa, relevante e eu considero que foi bastante inovadora nesse período de crise que a gente enfrentou.
LT: Como é que foi para você exercer a liderança de uma organização internacional? Quais foram os maiores desafios, os medos e confrontações nesse período?
ES: No início já vivíamos grandes desafios com as transformações na área de propriedade intelectual que foram derivadas da revolução digital, que nos exige movimentos cada vez mais alinhados com o mundo digital e novas tecnologias no geral.
Mantivemos a associação em andamento e os associados conectados, apesar da crise que enfrentamos pela Covid e que não só atingiu a saúde, mas também o âmbito social, político e econômico. Então, com certeza, eu acho que esse foi o maior desafio que enfrentamos nesse período.
LT: Como você vê esse ambiente de propriedade intelectual diante do aumento da virtualidade, principalmente na época da pandemia, e o surgimento de redes sociais? Isso mudou muita coisa para a propriedade intelectual?
ES: Os sistemas de PI vêm se adaptando com flexibilidade e fornecem instrumentos para o combate à violação dos direitos nos meios digitais e no mundo virtual. Então, com certeza, eu posso dizer que a pirataria vem se beneficiando dos espaços de oportunidades, criado por essa nova realidade. A ASIPI, por exemplo, realiza eventos de conscientização, apoia os governos e titulares de direitos na construção de instrumentos adicionais para lidar com essa situação. Então, acho que a ASIPI tem um papel importante nesse tema.
LT: Qual é o panorama hoje do mercado de propriedade intelectual na América Latina, desde o México até a Argentina? Quais são os desafios das firmas?
ES: Posso te dizer que o grande desafio - mais que comprovado com a crise que a gente passou com a pandemia - é a revolução digital e a rapidez com que as novas tecnologias estão surgindo. E tem temas como serviços automáticos de anuidades e renovações, plataformas digitais de prestação de serviços, Protocolo de Madrid e PCT, entre outros, que afetam diretamente nossa região.
LT: Existe hoje um grande número de firmas de propriedade intelectual na América Latina familiares. Qual a sua análise a respeito dessa particularidade da propriedade intelectual?
ES: No passado era muito comum a existência dessas firmas familiares. Na América Latina ainda tem algumas. Já em outras regiões do mundo isso cada vez acontece menos. No entanto, com a realidade do mercado atual e o dinamismo em que o mundo está vivendo, surgiu a necessidade dos escritórios se profissionalizarem e terem uma estrutura societária mais corporativa. Inclusive, com o objetivo de reter profissionais de alto nível. Isso está agora refletindo na América Latina. Você vê que cada vez menos nós temos firmas familiares exclusivamente administradas por família.
Tem firmas especializadas em propriedade intelectual e firmas corporativas que têm um setor de propriedade intelectual. Isso independente de ser familiar ou não.
LT: A ASIPI tem uma posição muito importante hoje no mercado não só da América Latina. Vocês têm várias alianças com organizações de todo o mundo. Como está essa colaboração hoje da ASIPI com essas organizações de propriedade intelectual?
ES: A ASIPI é a mais importante associação em matéria de propriedade intelectual na América Latina. É super reconhecida e respeitada mundialmente. Nós temos atualmente mais de mil associados e participamos de reuniões na Ompi, na EUIPO, na IPO e em discussões importantes sobre normativas da área de propriedade intelectual. Então, ao longo da sua história, a ASIPI vem estabelecendo inúmeras e frutíferas colaborações com essas associações de PI nacionais, regionais e internacionais e com organizações e instituições da mesma área que compartilham da mesma visão e objetivo que tem a ASIPI.
O resultado disse são várias iniciativas para benefício da proteção dos direitos da propriedade intelectual e que eu considero fundamental para o desenvolvimento econômico dos países, em especial da nossa região aqui na América Latina.
LT: Qual é hoje o nível de automatização das agências de propriedade intelectual, como o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) no Brasil? Aumentou muito?
ES: As entidades governamentais na América Latina estão cada vez mais trabalhando na automatização dos serviços. Atualmente, grande parte delas já contam com apoio também na Ompi e do projeto IPKEY, que é apoiado pela EUIPO, para dar um apoio às entidades nesse sentido de ajudar na automatização.
Esse movimento é extremamente importante para o desenvolvimento e incentivo da inovação na nossa região. Ficou mais do que comprovado isso na pandemia. Até porque alguns INPIs tiveram que parar de funcionar por não terem ferramentas necessárias para trabalharem de forma remota e, com isso, a ASIPI até fez alguns eventos, logo no início da pandemia, para dar apoio a essas entidades.
O INPI brasileiro foi um dos que soube rapidamente se preparar para esse novo cenário, dando continuidade de forma normal aos seus serviços. O INPI não parou em momento nenhum.
LT: Há hoje uma série de matérias intimamente relacionadas com a propriedade intelectual, por exemplo, cibersegurança e health care. Você acha que as firmas especializadas em propriedade intelectual estão assumindo esse desafio? Ou elas estão deixando essas mudanças para as firmas de multiserviços?
ES: Acho o contrário, porque vejo que as firmas especializadas em propriedade intelectual justamente estão ampliando suas áreas para tratar dessas matérias que são afins à propriedade intelectual e são bastante discutidas atualmente, algo importante para os ativos de propriedade intelectual.
Então, tanto na área de proteção de dados e outras diferentes áreas que afetam a propriedade intelectual e também aos nossos escritórios e as grandes corporações estão sendo realmente tratados por escritórios também especializados.
LT: Temos no Brasil um caso emblemático para a América Latina e também para o mundo, que é o caso da Apple do iPhone. Há uma marca, que é a Gradiente, que registrou o nome iPhone lá em 2001, antes da criação da Apple, que foi em 2007. E aí existe esse processo que está tramitando na Justiça desde então: a Apple contra a Gradiente questionando que o nome iPhone é da Apple. Sei que vocês, o escritório Dannemann Siemsen, são os advogados da Apple. Sei que existe a confidencialidade entre cliente e advogado, mas o que você pode falar sobre esse caso emblemático QUE está se arrastando na Justiça até hoje?
ES: Agora trocando o cargo da ASIPI para o Dannemann, essa pergunta já vai mais para o escritório. Não posso entrar muito em detalhes do caso por motivos óbvios, mas o que posso dizer que ainda está sob judice a decisão do caso. Posso falar um pouco sobre a decisão do Superio Tribunal de Justiça. O STJ, em decisão bem fundamentada e tecnicamente impecável, considerou que a expressão iPhone, que na sua origem era descritiva de Internet Phone, passou a ser protegível para a Apple por força do evento do secondary meaning, que, em português, nós dizemos segundo sentido.
Entramos exatamente nesse ponto agora e o secondary meaning ainda não é reconhecido na área administrativa, mas já é reconhecido na esfera judicial.
LT: Então, o caso continua e continua essa discussão que ainda vai se prolongar por mais um tempo?
ES: Isso. Exato.
LT: Como foi para você ser a segunda mulher na história na presidência da ASIPI? O que você enfrentou? Como foi?
ES: Me sinto realizada e super honrada de ter assumido o cargo de presidente da ASIPI e ser a segunda mulher como presidente nessa longa história da associação. Acho bom a Associação estar abrindo para essa diversidade. E fico feliz de poder ser um incentivo, com esse cargo, para as mais jovens profissionais. É importante a questão da liderança, de poder trazer o entusiasmo das mais jovens e a dedicação e empenho para chegar lá e mostrar que é possível chegar lá. Nesse período criamos o Comitê de Diversidade e temos planos para fazer um programa de mentoria sobre a liderança feminina dentro da ASIPI.
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