O machismo nos escritórios de advocacia

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Advogadas acreditam ser necessário um trabalho de mudança de cultura no mundo legal
Fecha de publicación: 08/03/2020
Etiquetas: Brasil

No dia a dia da profissão e na prática do Direito elas já são quase metade do número de advogados no país. Prova disso são os dados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Do universo de 1.185.000 profissionais do setor, 588 mil são mulheres.  

Em pensar que, há 122 anos, o Brasil tinha a primeira mulher a exercer a advocacia da sua história. Era a fluminense Myrtes Gomes de Campos, que concluiu o bacharelado em Direito em 1898.

Myrthes Gomes de Campos

Mas por causa da discriminação da época, ela só conseguiu entrar no quadro de sócios efetivos do Instituto dos Advogados do Brasil, entidade que existia antes da OAB, apenas em 1906. Na época, sua atitude de vestir uma beca e entrar num tribunal para defender um homem, acusado de agredir o outro a facadas, escandalizou o país.

Pouco mais de um século depois o mundo legal evoluiu – e muito – mas o machismo ainda está bem presente. Por conta disso, e para acabar com esta prática, muitos têm comitês especiais de defesa dos direitos delas e da diversidade.  

E para falar dos desafios delas e quebra de paradigmas no mundo legal, a equipe da LexLatin conversou sobre machismo no mundo jurídico com três advogadas do Demarest Advogados: Luciana Tornovsky, Head de D&I e Sócia de M&A; Maria Helena Bragalia,  Sócia do Contencioso Cível; e Marcia Cicarelli, líder do D Mulheres e Sócia de Seguros e Resseguros.

Como funciona o D Mulheres e quais são os valores do escritório?

Márcia Cicarelli

Marcia Cicarelli: O D Mulheres foi um dos primeiros dentro do nosso programa de diversidade e inclusão. Nós completamos dois anos em agosto de 2019 e ele é formado por diversas sócias. Temos uma governança, o diagnóstico que fizemos no escritório e o que orienta nossas ações e objetivos. Temos uma rotação na liderança, uma alternância nessas ações, uma escuta ativa de todas as mulheres de todos os níveis hierárquicos e também do próprio corpo administrativo. E nós fizemos muito nesses últimos dois anos.

Por quê ele foi o primeiro?

Luciana Tornovsky: Ele foi o primeiro, porque temos uma enorme quantidade de mulheres aqui dentro do escritório. Mesmo antes de 2017 já discutíamos muito isso aqui no Demarest. O comitê é aberto para todo mundo, porque a gente acredita que é fundamental ter o apoio dos homens nesta questão.

O escritório tem quantas mulheres hoje?

Luciana Tornovsky: O escritório tem 700 pessoas, temos 54% de mulheres no jurídico, na base da pirâmide, de advogadas. Nas faculdades de direito hoje em dia mais de 50% são mulheres. O que acontece é que na medida em que as mulheres ascendem na carreira, vemos esse percentual diminuir, infelizmente.

Luciana Tornovsky

No Demarest a gente tem espaço para melhorar essa relação. São 50 e poucos sócios, contando com os associados chegamos a 74. Hoje 30% dos sócios são mulheres.

Como você vêem o machismo no mundo legal?

Marcia Cicarelli: O machismo não é explícito, mas percebemos no dia a dia. O que a gente verifica, por exemplo, é a forma como a mulher é percebida: como profissionais não flexíveis, com um baixo comprometimento, que podem ser taxadas como muito emotivas, assertivas, ou agressivas.

E uma questão importante é que muitas vezes numa escolha de uma tarefa desafiadora, é dada preferência ao homem ao invés de uma mulher. E tem a questão do assédio, que a gente não pode desprezar.

Mas o que efetivamente bloqueia e dificulta a atenção das mulheres é a questão da percepção. Somos muito mais pressionadas pelos homens no estilo de liderança que os homens, até porque elas têm um estilo diferente. Mas como é o modelo do homem que dita as regras, porque é o que vem acontecendo ao longo dos anos, muitas vezes o estilo da mulher ou a forma que se comporta pode ser uma percepção equivocada, que desfavorece a mulher. Com isso, ela acaba não tendo as mesmas chances de crescimento do que o homem na carreira.

É algo intencional na opinião de vocês?

Maria Helena Bragalia: E o que é muito forte na questão do machismo é o viés do inconsciente também, é o que a Márcia falou que não é explícito. Ninguém fala abertamente que é machista ou alguma frase que você vê que a pessoa realmente expressa o machismo.

Maria Helena Bragalia

Muitas vezes é inconsciente, achando que a mulher é mais fraca, que não vai dar conta, ou como a Márcia falou, quando a mulher é muito agressiva, ao invés dela ser vista como líder, como assertiva, com pulso forte, querendo coordenar - ela é taxada como mandona.

Ainda temos muito a questão do contexto histórico, da mulher ter que ser submissa ao marido. Essas questões aconteceram há muito pouco tempo, então a gente carrega ainda muito isso.

Então os comitês femininos ainda são necessários?

Luciana Tornovsky: O que a gente espera é que no futuro não precisemos ter mais o D Mulheres e nenhum outro programa de diversidade e equidade, que isso possa desaparecer naturalmente. Mas, infelizmente, hoje em dia ainda é necessário.

O dia da mulher ainda é necessário então?

Maria Helena Bragalia: Ainda é necessário que haja o programa e iniciativas por parte das empresas, para reforçar o empoderamento feminino, questões como a ascensão da mulher na carreira.

Quais são as questões mais relevantes para as mulheres no mundo legal?

Luciana Tornovsky: Um ponto importante, que a gente esqueceu de mencionar, é a maternidade. Ela foi elencada junto com essa questão do machismo como um problema, no sentido de que a maternidade ainda é percebida como uma pausa, queda ou perda na carreira.

A mulher pode deixar de ter uma promoção, por exemplo, ainda que ela tenha o mesmo tempo de trabalho e dedicação que um homem no mesmo estágio da carreira, porque ela está grávida ou acabou de ter bebê.

E muitas vezes não se verifica que é exatamente o oposto, que a maternidade, assim como a paternidade, devem ser tratados com normalidade na vida de cada profissional e cada vez mais se espera que haja uma divisão de tarefas e que na verdade traz para os dois, principalmente para a mulher, uma série de novas competências fundamentais para que elas tenham um incremento de carreira.

Como é vista a paternidade e a maternidade nos escritórios de advocacia?

Luciana Tornovsky: Quando um homem diz que vai se tornar pai, não há essa visão dos líderes de que ele terá dedicação menor. Também não se tem a percepção do incremento de competências que a maternidade e a paternidade trazem.

E como é o machismo fora dos escritórios, muda alguma coisa?

Maria Helena Bragalia: O Direito é uma carreira muito multidisciplinar e a gente encontra diferenças a depender da área. Por exemplo, eu atuo muito no contencioso cível, que são todas as disputas judiciais que acontecem no Fórum ou mesmo num Tribunal Arbitral.

No Fórum, já temos muitas juízas trabalhando, então a questão do machismo acaba ficando um pouco mais diluída. Na arbitragem, isso não acontece tanto. Na área de Direito de Família, onde as mulheres preponderam, é um ambiente com mais mulheres.

Quando você vai, por exemplo, para o Direito Trabalhista e discussão com sindicatos, é uma área mais pesada, dura para a mulher. A mesma coisa no Criminal, onde se lida basicamente com homens.

Além das questões internas acho interessante olhar a percepção do machismo também no ambiente do Direito como um todo, que tem variações em razão da área em que o ou a profissional atua.

Marcia Cicarelli: Tem que deixar claro, até para nossas meninas como fonte de inspiração, é que ninguém tem que se masculinizar para crescer na carreira, ninguém precisa fingir ser outra pessoa. Nós podemos ser mulheres e ser bem sucedidas.

Como vocês lidam com a questão do assédio?

Luciana Tornovsky: Estamos num momento de aprendizado interno e externo. Aqui dentro do escritório temos feito muitos workshops para mostrar que as coisas mudaram e que o que era aceito há pouco tempo não é mais hoje, então existe um compromisso do escritório com essa mudança.

O que era aceito antes e hoje não é aceito?

Marcia Cicarelli: Nós somos de uma geração em que a gente aceitava como normal muita coisa, desde o assédio do ônibus por exemplo. Eu andava com um alfinete quando eu ia de ônibus para a escola, porque era muito comum alguém “encoxar”.

Luciana Tornovsky: Quando eu era estagiária, não era aqui do Demarest, estava em outro escritório menor. Meu chefe falava assim pra mim: Luciana, amanhã nós vamos despachar uma liminar importante, então venha com uma saia curta. E eu não achava nada demais.

Hoje em dia, se um sócio fizer um comentário desse para alguma estagiária nossa, imediatamente esta estagiária vai se sentir super ofendida e vai trazer para o D Mulheres ou para o RH. Vaio dizer que isso é um absurdo e que o profissional não poderia falar isso.

E gente aceitava mais as piadinhas antigamente do que hoje em dia. Coisas que são politicamente incorretas, até por questões raciais, hoje em dia são inaceitáveis. Agora as mulheres estão muito mais focadas em ser reconhecidas pelo lado profissional e  não pelo lado físico.

E quando um homem chega e ressaltam a beleza, ao invés do profissionalismo ou da capacidade técnica que vocês têm? Qual a reação?

Maria Helena Bragalia: Isso é uma coisa que ainda existe, tem formas e formas de isso acontecer. Acho que quanto mais jovem se é, mais pesado fica esse tipo de elogio.

Então não tem nada de elogio, não é isso?

Luciana Tornovsky: Às vezes tem, a pessoa quer ser agradável. Mas você consegue perceber se a pessoa está fazendo isso para te desmoralizar. Eu atuo no M&A, fusões e aquisições. Se estou numa grande negociação e o cara vira e fala alguma coisa que é para me desconcertar, para eu perder meu raciocínio na hora da negociação dá para perceber. Ou se ele quer ser gentil, uma pessoa legal, que você conhece a família, uma gentileza. Você consegue perceber pelo tom de voz, pela forma como fala, olha e o momento.

Como vocês se sentem com esse tipo de “elogio”?

Marcia Cicarelli: Esses elogios colocam a mulher numa função meramente decorativa. E colocam a mulher apenas com essa função. Eu cheguei a trabalhar em algumas instituições mais acadêmicas de Direito de Seguro, que é a minha área. Quando o encontro tinham maioria de homens e eu era bem nova, tinha alguns anos de formada, eu ouvia: agora a reunião ficou mais bonita. Então para secretariar a reunião vai ser a doutora Márcia. Isso coloca a mulher numa função assessória, decorativa.

E é algo tão arraigado, que as vezes os homens nem se dão conta. A mulher, durante muitos anos, teve esse papel mais decorativo, subalterno e assessório. Isso é muito arraigado, principalmente nas gerações mais antigas, nos homens mais velhos.

E às vezes nem é por mal, mas seria importante um trabalho de conscientização. As gerações mais novas estão muito atentas, a gente percebe isso nas jovens advogadas e estagiárias que não aceitam mais. E os homens mais jovens também estão mais ligados nisso. Há uma mudança cultural, como disse a Maria Helena.

Maria Helena Bragalia: Temos a liga formada por profissionais mais jovens. E elas trazem questões que às vezes ficamos surpresas, porque elas se colocam de uma forma que na nossa época a gente não se colocava. Mas estamos felizes de ver que hoje em dia elas estão mais atentas e preocupadas com o ambiente.

Aqui no escritório o ambiente é muito bom, temos um canal de denúncia, funciona e as pessoas confiam. Nas nossas festas de fim de ano sempre antes lembramos a todos que é um ambiente profissional e corporativo. Então não temos problema, sempre é muito gostoso. O Demarest é muito conhecido no mercado pelo bom ambiente de trabalho. Somos muito orgulhosas disso.

Para finalizar, como quebrar essa cultura machista nos próximos anos?

Marcia Cicarelli: O primeiro passo para quebrar a cultura machista é falar sobre ela. Precisamos ter consciência de que isso existe: enfrentar esse problema com transparência. É inerente à sociedade e nenhuma organização vai estar livre do machismo, porque cada local é o reflexo da sociedade em que se insere.

Você precisa olhar para esse problema, enfrenta-lo e envolver a alta liderança. Não existe mudança de cultura numa empresa sem o envolvimento da alta liderança, porque isso acontece de cima para baixo.

Não conseguimos mudar a atitude dos funcionários sem um exemplo dos sócios, da diretoria executiva e do conselho. Na nossa percepção, buscamos quais são as ações efetivas e não é uma só ação. Tudo isso precisa ser repetidos ao longo do tempo. Seja pela alternância ou até pela nossa própria cultura. Não são apenas os homens que são machistas, as mulheres podem ser tão ou mais machistas que os homens, porque é uma questão cultural.

E a partir disso, desenvolver um plano de ação. Você precisa ir moldando de acordo com o momento, com a evolução e a situação do mundo. É um trabalho eterno. A Luciana falou que a gente espera não precisar do D Mulheres, mas acho que ainda no curto prazo e no médio prazo temos ainda um grande trabalho pela frente para desconstruir o machismo.

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