O que mudou no país nos dez anos da Lei da Ficha Limpa

O ex-juiz eleitoral e hoje advogado eleitorialista é um dos pais da Lei que ampliou os critérios de inelegibilidade no Brasil/Reprodução Facebook
O ex-juiz eleitoral e hoje advogado eleitorialista é um dos pais da Lei que ampliou os critérios de inelegibilidade no Brasil/Reprodução Facebook
Para Márlon Reis, um dos autores da norma, o apoio popular mostra a importância da legislação
Fecha de publicación: 03/11/2020

A Lei da Ficha Limpa tem vários autores – e Márlon Reis é um dos seus mais vocais porta-vozes. O ex-juiz eleitoral e hoje advogado eleitorialista é um dos pais da Lei Complementar 135, que ampliou os critérios de inelegibilidade no Brasil e que completa sua primeira década em 2020.

O texto influencia, desde então, as eleições em todos os níveis no Brasil. Por conta da Lei, mais de 1.600 candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador foram barrados de ter seu nome nas urnas até o momento pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Em um dos casos mais emblemáticos, um candidato a presidente com chances de vitória não pode competir em 2018 por uma previsão expressa da Lei Complementar. A lei ainda conta com respaldo popular – e Márlon sabe disso.

LexLatin, o advogado aponta que a Lei ainda é relevante para o Brasil e que poderá mudar não apenas a maneira como o eleitor se comporta diante de seus candidatos, mas também o modo como partidos tratam suas candidaturas. 

O advogado também rebateu críticas da própria advocacia, para quem a proposta daria ao Estado o poder de escolher quem compete nas eleições.  "Não está se extraindo nada do eleitor, apenas a candidatura de pessoas inequivocamente relacionada a atos contra a Lei", disse o eleitorialista, por telefone.

A seguir, trechos da entrevista.

Qual o saldo da Ficha Limpa, 10 anos depois de sua conversão em lei?

Os números que têm sido apresentados mostram a grande relevância na aplicação da Lei da Ficha Limpa na legislação eleitoral. Há uma quantidade muito grande de pessoas enfrentando problemas com registro e tendo registros indeferidos – e isso é prova de que é uma Lei eficiente, de que ela não ficou só no papel. Ela de fato tem uma vitalidade institucional bastante relevante, e mudou estruturalmente o padrão da legislação eleitoral.

Mas, além disso, acredito que ela beneficiou muito o debate político no geral, essa questão da situação dos candidatos. Isso é muito presente nos debates: a investigação, entre os concorrentes, de falhas na biografia, de manchas na biografia, em um nível que não se via antes da Lei da Ficha Limpa, uma vez que era um assunto que não era relevante, não era preponderante. Os partidos não se ocupavam com esse tema.

Como você avalia essas críticas com o passar do tempo que a lei está em vigor?

Estes argumentos são, com todo o respeito, falaciosos. Porque nenhuma nação democrática tem eleições sem regras sobre o registro de candidaturas. Algumas delas tem regras muito mais rigorosas que as nossas. Em vários estados dos Estados Unidos, por exemplo, há o instituto que pode banir uma pessoa da participação eleitoral pelo resto da vida, e não por um prazo, como a Lei da Ficha Limpa faz. Isso se reproduz mundialmente.

Essa história de que o Estado não tem papel é de uma infantilidade tão grande que, se essa reclamação fosse atendida, não teríamos vedação alguma. Como que é há um limite para só uma reeleição no caso dos mandatos do Executivo? Se retirarmos essa cláusula, vamos permitir reeleições sucessivas? Nós vamos permitir que uma esposa suceda o marido em uma prefeitura porque o povo é quem tem que decidir se ela deve ser prefeita ou não? 

Isso é de uma ingenuidade tão grande que fica claro que as leis devem sim estabelecer marcos para definir quem pode ou não pode ser candidato. 

E como isso poderia ser revertido?
A ressalva que deve ser feita é a seguinte: essa nova Lei seja submetida a um grande debate pelo parlamento e pela sociedade, e que ela seja constitucional, dentro dos padrões da Constituição federal. 

Todas essas etapas foram superadas, e a Lei da Ficha Limpa foi aprovada por uma ampla maioria do Congresso, sancionada pelo presidente da República e declarada constitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal), e ponto final. Todos os parâmetros, democráticos, sem exceção, foram observados na construção desta lei. O que sobrou são pessoas que deveriam admitir que estão descontentes com o aumento do rigor que esta lei proporcionou.

Advogados eleitoralistas criticam a lei, não apenas em relação à redação, mas também sobre o papel que o Estado passaria a ter no poder de escolha dos eleitores. Como o senhor analisa a questão?

Apesar dos números, o percentual de barrados é muito diminuto em relação ao montante geral de candidatos. O que significa que a Lei não impede o eleitor de ter um amplo leque de possibilidades de escolha. Não está se extraindo nada do eleitor, apenas a candidatura de pessoas inequivocamente relacionada a atos contra a Lei. 

Inclusive com uma série de cautelas. Por exemplo no caso de candidato condenado por improbidade administrativa, não basta a condenação, precisa ser comprovado que houve o cumprimento de todos os requisitos, que houve dolo, intencionalidade e dano ao erário. Se algum desses elementos não estiver presente, não há inelegibilidade. Quem é condenado e inelegível praticou ato de improbidade, fez propositalmente, prejudicou e causou abalo aos cofres públicos, com alguém se apoderando desse dinheiro. É algo muito sério, e os critérios são muito bem delineados na Lei.

Os efeitos da Lei Complementar devem ser vigentes de maneira eterna?

A Lei da Ficha Limpa é fruto de um momento da cultura política do Brasil. E a cultura das nações evolui, e os países  e nações se desenvolvem, assim como as pessoas vão da infância até à maturidade. Estamos no meio do caminho. E não tenho dúvida de que no futuro não será necessário aplicar a Lei da Ficha Limpa – embora não precise se revogar também, os partidos a observarão. 

Só pra se ter  uma ideia, hoje os partidos sequer passam seus candidatos por um crivo jurídico prévio no aceite de suas candidaturas Ainda não faz parte da cultura política dos partidos, e no futuro os próprios partidos observarão se as pessoas cumprem ou não os critérios de elegibilidade, e a sociedade também estará mais atenta para evitar votos em gente nessa natureza. Não tenho dúvida de que no futuro, não que a lei precise ser revogada, mas ela não precisará mais ser aplicada na prática por conta da evolução dos costumes políticos. 

A Ficha Limpa corre algum risco institucional, algum ataque por parte de um dos poderes? 

A Lei está protegida por uma blindagem social. É impossível alguém tocar na Lei da Ficha Limpa sem uma grande comoção no país. Digo isso porque testemunhei as poucas tentativas que existiram, e elas foram seguidas por forte reação popular, causando um recuo. 

Hoje não há tentativas de mudanças da legislação, mas é preciso que a sociedade não baixe a guarda, permaneça atenta e reaja prontamente se houver qualquer tentativa de mudança dessa Lei que não é apenas fruto da democracia, mas uma das mais importantes experiências na prática da democracia brasileira – por conta do envolvimento de praticamente toda  a população. Além das pessoas que trabalharam no projeto, ela conta com o respaldo praticamente unânime da sociedade brasileira.

Em 2018, durante o julgamento da prisão após condenação em 2ª instância, o senhor demonstrou preocupação de que este entendimento pudesse se refletir no entendimento da Ficha Limpa. Isso chegou a ocorrer, efetivamente?

Realmente este problema foi superado e não se consolidou, felizmente. Bem no começo da aplicação da Lei foram apresentados projetos para enfraquecer os efeitos da Lei Complementar. Naquele momento foi o maior risco – mas quando houve reação popular a isso, e quando tais projetos recuaram, houve um clima de maior tranquilidade.

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