A posição do Brasil em tempos de guerra

"Para as exportações de commodities brasileiras, tudo depende da intensidade do conflito e da duração"/FADUSP
"Para as exportações de commodities brasileiras, tudo depende da intensidade do conflito e da duração"/FADUSP
Alberto do Amaral Júnior: "Papel desempenhado pelo presidente no âmbito diplomático foi absolutamente lamentável".
Fecha de publicación: 24/02/2022

Apesar da recente visita de Jair Bolsonaro a Vladimir Putin em Moscou, o governo brasileiro declarou neutralidade em relação ao conflito entre Rússia e Ucrânia. Mas há divergências: enquanto o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) condenou o ataque, o presidente evitou, pelo menos nesta quinta-feira (24), críticas mais fortes ao presidente russo. "Queremos a paz porque ela interessa a todos nós, a guerra não interessa a ninguém. A nossa posição é pela paz", afirmou.

A declaração foi dada em uma live pela internet. O ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto França, que também participou da transmissão, reforçou a posição da diplomacia, que por enquanto dá o tom das discussões.

"[O Brasil] fala como ator global com todos os lados, todos os países, é capaz de incentivar o diálogo, que os países venham à mesa de negociação e, através do diálogo e negociação, se chegue a um acordo. É o objetivo que nós queremos, a paz mundial", disse.

As declarações têm relevância para o país principalmente em relação a questões comerciais. Em entrevista a LexLatin, Alberto do Amaral Júnior, professor de Direito do Comércio Internacional da Universidade de São Paulo, avalia o posicionamento brasileiro e as consequências mais imediatas do conflito para o país. 


Leia também: BR do Mar: incentivo à cabotagem deve transformar logística do Brasil


Luciano Teixeira: Qual a avaliação que o Sr. faz desse conflito e quais as consequências para o Brasil?

Alberto do Amaral Júnior: O conflito é extremamente grave, porque viola um princípio básico da convivência internacional que está consagrado na Carta das Nações Unidas, que é o princípio da independência política e da integridade territorial dos estados. Viola também a Carta da ONU do artigo II ao VIII, o que explicitamente consagra o princípio da não intervenção.

É importante acentuar que a Constituição brasileira também consagra o princípio da autodeterminação dos povos e o princípio da solução pacífica das controvérsias na linha do que fez a Carta da ONU.

O conflito na Ucrânia estabelece e inaugura uma nova relação de poder na ordem internacional e na Europa. É importante acentuar que o entendimento entre a Rússia e a China foi, até o conflito da Ucrânia, o fator mais importante após o término da Guerra Fria.

Rússia e China chegaram a entrar em guerra, mas Vladimir Putin e Xi Jinping celebram um acordo de amizade irrestrita. Isso significa que a China tem interesse em cooperar com a Rússia na área do petróleo e de infraestrutura. O país asiático tem a ideia da Rota da Seda, onde a Rússia é importante do ponto de vista da infraestrutura.

Vladimir Putin assegura o mercado chinês para a exportação de petróleo e um volume expressivo de comércio que ele mantém com o país vizinho. A China já tem um propósito de longa data de reformar a ordem internacional, que foi inaugurada após o término da Guerra Fria, a ordem unipolar. Esse entendimento significa uma contestação da ordem internacional, tal como ela foi estruturada no pós guerra, liderada pelos Estados Unidos.

LT: E o Brasil nessa história, há alguma relevância?

AAJ: Primeiro há uma visita do presidente Bolsonaro à Rússia na semana que antecedeu à invasão, algo que precisa ser avaliado. Essa visita foi oportuna do ponto de vista diplomático e não deveria ter sido cancelada por pressão norte-americana. 

Mas o papel desempenhado pelo presidente no âmbito diplomático foi absolutamente lamentável. Isto porque ele prestou solidariedade à Rússia e exibiu uma relação pessoal entre ele e o presidente Vladimir Putin, o que não é usual e comum nas relações diplomáticas que exigem moderação e prudência.

Isto gerou, por parte dos países ocidentais, uma grande estranheza. Tanto é verdade que a porta voz do governo americano chegou a dizer que o Brasil estava do outro lado e criou uma situação de absoluto desconforto para o Brasil.

O presidente inclusive disse que, por coincidência ou não, a sua visita teria contribuído para a retirada das tropas russas da fronteira, o que não foi verdade, como os fatos demonstraram. Do ponto de vista diplomático, foi uma posição lamentável porque há toda uma tradição da diplomacia brasileira de defesa da paz.

Essa tradição encontra raízes no fato de que o Brasil solucionou todos os seus conflitos de vizinhança por intermédio do respeito ao direito internacional. Então o Brasil tem legitimidade para falar de paz.

Por isso, o presidente Bolsonaro deveria ter ido a Moscou, a Kiev, a Paris, a Londres e a Washington e deveria ter pregado a paz. Não que o Brasil seja um ator fundamental nesse caso - não é. Mas tem o dever constitucional e moral de vocalizar os interesses dos países em desenvolvimento, porque uma guerra afeta diretamente os interesses brasileiros.

Haverá reflexos econômicos, sobretudo na inflação e no câmbio, e afeta também a posição na órbita internacional. Se o Brasil assumir uma posição de apoio à Rússia, numa guerra que violou o direito internacional, a nossa posição será ainda muito mais complicada, porque o Brasil já é um pária na vida internacional nesse momento e poderá ter a sua imagem ainda muito mais degradada.

A diplomacia brasileira se consagrou ao longo do tempo pela sua capacidade e sua competência. Mas os atos sucessivos da diplomacia presidencial brasileira no governo Bolsonaro têm sido extremamente negativos.

LT: As sanções feitas contra a Rússia terão algum efeito?

AAJ: As sanções não terão nenhuma eficácia. Cuba é objeto de sanções há 60 anos ou mais e isso não mudou o governo cubano. Sanções são aplicadas à Coreia do Norte, ao Iraque e ao Irã sem terem efeitos práticos.

A Rússia não é Iraque, Irã, Cuba nem Coreia do Norte: é a segunda maior potência militar do mundo, uma potência nuclear, não é uma potência superpotência econômica, mas tem riquezas minerais muito expressivas. O governo russo que tem cerca de US$ 650 bilhões de reservas e tem condições de suportar as sanções impostas pelo Ocidente.

LT: O que pode acontecer a partir de agora nesse conflito?

AAJ: Putin vai querer anexar a Ucrânia por completo. Na verdade a Ucrânia é o berço da Rússia. A ideia da Ucrânia e da Rússia estarem ligadas é muito antiga, alimentada desde o Império Russo. Putin já afirmou, nos anos 1990, que a destruição ou a desintegração da União Soviética foi a maior tragédia política do século XX. Ele quer reconquistar ou recuperar a glória perdida.

Nesse sentido, é muito provável que após a anexação da Ucrânia ele faça pressões. Não invadirá diretamente nenhum país pertencente à Otan e mais ex-repúblicas soviéticas, mas fará pressões para que esses países se desarmem e saiam da Otan.

Nesse sentido, há um risco muito grande de generalização de um conflito militar e até mesmo de uma guerra nuclear. Obviamente isso seria absolutamente catastrófico, mas essa hipótese não está afastada.

LT: Haverá reação com força militar por parte do chamado Ocidente ou não? As ameaças vão ficar só no campo das restrições?

AAJ: Os Estados Unidos e a União Europeia vão reagir se houver uma agressão a qualquer Estado pertencente a Otan. O presidente Biden declarou isso no seu discurso.


Veja também: Tentativa de intimidação de Bolsonaro isola ainda mais governo


LT: Somos um dos maiores exportadores de commodities do mundo, seremos afetados de alguma forma no setor agrícola?

AAJ: Teremos uma alta aqui dentro de preços e uma alta no mercado internacional de commodities. A Rússia é o maior exportador de trigo e a Ucrânia o quarto maior. O comércio internacional será duramente afetado.

Para as exportações de commodities brasileiras, tudo depende da intensidade do conflito e da duração. Nosso maior parceiro, a China, por enquanto não foi afetado. O comércio com a Rússia é muito menos expressivo, mas o Brasil importa fertilizantes de lá, algo fundamental para a agricultura brasileira.

Além disso, haverá um outro problema extremamente importante e sério: ficam paralisados todos os esforços para uma reconstrução do multilateralismo comercial, ou seja, para revigorar a Organização Mundial do Comércio que estabelece as bases do comércio multilateral no mundo.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.