A adoção do sandbox regulatório --sistema em que o Banco Central autoriza e acompanha projetos com modelos de atuação inovadores, de modo a elaborar novas normas a partir da observação prática dos negócios-- deve trazer modificações relevantes para a atuação de advogados, na avaliação de João Loyo de Meira Lins e Aristóteles de Queiroz Camara. Eles apostam em uma participação maior dos profissionais do direito desde a concepção à execução do projeto.
Camara é sócio do Serur Advogados, graduado pela Escola de Direito de Recife, da Universidade Federal de Pernambuco, institiuição onde obteve título de mestre em direito tributário. Na Universidade de São Paulo, recebeu um PhD. Loyo também é sócio do escritório e formou-se em direito na UFPE.
O Banco Central colocou em consulta pública três propostas de normativos sobre diferentes assuntos, com o objetivo de impulsionar a competição no sistema financeiro, como vem fazendo há dois anos dentro da Agenda BC#. O regulador vai receber sugestões do público até 31 de janeiro do ano que vem e analisá-las antes de apresentar um texto final.
A primeira consulta, diz respeito a "escrituração de duplicata escritural, sobre o sistema eletrônico de escrituração gerido por entidade autorizada a exercer essa atividade e sobre o registro e a negociação desses títulos de crédito escriturais". Outro texto proposto pelo BC visa implementar o Sistema Financeiro Aberto (Open Banking), regulando o compartilhamento de dados dos usuários. A terceira proposta cria um sandbox regulatório e condições para a oferta de produtos neste ambiente.
Como os srs. vêem a proposta colocada em consulta pública pelo Banco Central sobre Open Banking?
A proposta do Banco Central combina aspectos explicativos e prescritivos, isto é, ao mesmo tempo em que serve como referência para a compreensão do modelo de Open Banking, já indica as suas possíveis formas de funcionamento, como deverá operar, como se darão a regulamentação e o controle. Esse caráter dúplice é interessante para conferir segurança jurídica, além de proporcionar manifestações mais respaldadas por parte dos interessados.
Apesar disso, ao menos, entre as manifestações publicadas no site do Banco Central (já que existem outras formas de participação na consulta pública), percebe-se que a discussão gira em torno de ideias mais gerais, como a ampliação da concorrência no sistema financeiro – uma das vantagens que justificariam a implementação do Open Banking – e, por outro lado, a preocupação com a privacidade de dados pessoais.
Parece-me que a proposta é de uma pequena revolução no sistema financeiro nacional, tanto na relação e na competitividade entre os participantes do mercado, quanto nas oportunidades geradas para os consumidores. A expectativa, caso o modelo vingue e se desenvolva dentro das projeções, é de adoção de esforços de modernização, compartilhamento e padronização de serviços, com a consequente ampliação da oferta aos clientes. Daí, a depender de outros fatores, poderemos ter redução de juros, desenvolvimento de novos produtos, empresas e nichos de mercado, enfim, a criação de um novo ambiente de negócios ligado ao mercado financeiro.
Por outro lado, as preocupações já ventiladas acerca da privacidade e do tratamento dos dados pessoais são pertinentes. Trata-se de um assunto que está muito em voga, inclusive em virtude da aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e das discussões sobre a data em que essa legislação entrará em vigor. Tais debates giram em torno, sobretudo, das dúvidas sobre as possibilidades e os meios de adequação a esse novo regramento, da sua eficácia social (de a lei “pegar”, como se costuma dizer) etc. Logo, é natural que o tema também seja objeto de controvérsias no âmbito do Open Banking, já que o modelo tem, como uma de suas principais características, o compartilhamento de dados dos clientes entre as instituições participantes. De qualquer forma, vislumbro na proposta do Banco Central uma compatibilidade significativa com os princípios e as regras da LGPD, com a exigência de livre e expresso consentimento, vedação de obtenção por meio de contrato de adesão e formulário previamente preenchido, bem como a necessidade de acesso aos clientes sobre as informações compartilhadas e armazenadas.
E sobre sandbox regulatório?
Embora não esteja chamando tanta atenção, nem provocando tantas manifestações quanto o Open Banking, o sandbox regulatório – também em consulta pública promovida pelo Banco Central – tem um potencial relevante para o ambiente de negócios brasileiro. Neste caso, o alcance pode ser ainda maior, já que o modelo de sandbox também está sendo discutido por outras entidades reguladoras, como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A própria proposta do Banco Central, porém, vai além das instituições financeiras e afins, englobando associações, sociedades, empresas individuais de responsabilidade limitada, prestadores de serviços notariais e de registro, empresas públicas e sociedades de economia mista.
Em síntese, a ideia de sandbox – que faz alusão às “caixas de areia” onde as crianças brincam, sendo observadas pelos pais – é a de proporcionar um ambiente controlado de testes, um conjunto específico de requisitos regulatórios, para fins de desenvolvimento de projetos de inovação. Em outras palavras: algumas condições especiais são estabelecidas para que as empresas “experimentem” a oferta de novos serviços e produtos no mercado, a um universo delimitado de clientes, por um período específico, mediante prestação de contas etc. Se o negócio funcionar bem, elas poderão ser autorizadas a dar continuidade de forma regular, fora desse regime próprio. A medida é interessante, pois confere maior segurança a quem pretende investir em inovação, ao mesmo tempo em que prevê um controle, um monitoramento por parte das instituições reguladoras.
Outro ponto relevante é o fato de o Banco Central incluir soluções para o Open Banking entre as prioridades estratégicas do 1º ciclo do sandbox regulatório (a iniciar em agosto de 2020). Percebe-se, portanto, uma convergência nas ações da autarquia, uma linha clara e concatenada de atuação.
E a consulta sobre duplicata escritural?
O fato de propostas de resolução serem submetidas à consulta pública é, de um modo geral, elogioso, na medida em que oportuniza a manifestação da sociedade sobre o assunto. Trata-se de uma etapa que se alinha a uma ideia de democracia, de participação.
Neste caso específico, porém, acredito que a consulta tende a gerar resultados menos impactantes. Na realidade, a proposta sobre duplicata escritural tem um caráter eminentemente técnico e visa a regulamentar algo que já existe e que, inclusive, tem previsão legal (Lei 13.775/2018). Assim, é conferida maior segurança jurídica à utilização desse título de crédito eletrônico pelo mercado, além de reforçar a tendência de informatização e modernização das relações contratuais e comerciais no país.
Que impactos podemos ver no mercado a partir da regulamentação da proposta de open banking? O que é preciso alterar na proposta do BC e por quê?
Como mencionei anteriormente, o Open Banking deve provocar uma alteração significativa no mercado, porque repercute em diversos temas ou segmentos com muito potencial de desenvolvimento no país: informatização, compartilhamento de informações, privacidade de dados, ambiente de maior competitividade, estímulo à inovação, portabilidade etc.
Concordo com muito do que vem sendo dito sobre esses impactos. Acredito que há uma tendência de engajamento tanto dos consumidores quanto das instituições financeiras tradicionais e das fintechs, nesse novo modelo, o que deve acentuar a competitividade no mercado, a variedade na oferta de serviços e produtos, a disponibilização de condições mais favoráveis e interações facilitadas aos clientes bancários. Uma proposta de crédito oferecida por um banco, por exemplo, pode ser coberta por outra instituição, com base nos mesmos dados, compartilhados a partir do consentimento do consumidor. Para os players do mercado, por outro lado, o modelo pode fornecer maior segurança, justamente em virtude do acesso a informações precisas, o que, por sua vez, tende a estimular o desenvolvimento de novos produtos e serviços, voltados a esse público potencial agora mais conhecido, possivelmente com custos mais baixos.
Considero a proposta do Banco Central bastante detalhada, contempla diversas situações, critérios, perfis, procedimentos. Não se pode esperar que uma resolução decida todas as questões e controvérsias sobre o tema, notadamente quando se trata de algo novo, ainda pouco experimentado até mesmo no âmbito internacional. O que resta, agora, é acompanhar o desenvolvimento dessa iniciativa, a forma como será colocada em prática, a sua compatibilização com outros diplomas legais (sobretudo, a LGPD e o Código de Defesa do Consumidor), para, a partir daí, identificar eventuais falhas, lacunas, antinomias, a serem dirimidas pelo Judiciário, pelo Banco Central ou mesmo em outras instâncias.
Que aspectos da prática de direito bancário devem se modificar para trabalhar com um cliente em um case de sandbox regulatório? Quais os principais desafios?
Acredito que a resposta para essa questão está ligada ao “ponto de partida”, à perspectiva de trabalho, seja para clientes do setor bancário ou de outras áreas da economia, já que, como mencionei, a ideia de implantação de sandbox regulatório não está adstrita às instituições financeiras. Até agora, já costumamos atuar, judicial e extrajudicialmente, com estrita atenção às leis e às normas e resoluções dos órgãos reguladores (como a CVM e o Banco Central). Com o sandbox, esse trabalho sofrerá algumas modificações relevantes. A tendência é que iniciemos o acompanhamento do cliente ainda na fase de desenvolvimento do produto ou serviço inovador, para que conheçamos com detalhes as suas características, potenciais e riscos. Isso terá impacto na orientação jurídica durante o período de inscrição dos projetos perante o Banco Central do Brasil e, evidentemente, ao longo da sua execução, que deverá atender a uma série de regras específicas, dentre as quais destaco a existência de prazos pré-determinados, com dever de descontinuidade e reflexos na relação com os consumidores. Como a ideia fundamental do sandbox é o estabelecimento de condições diferenciadas para um fim específico (estímulo à inovação, em suma), será preciso lidar com o cliente de uma forma ainda mais especializada, com preocupação aos detalhes de cada projeto e às características ou exigências de cada ciclo de sandbox.
As propostas fazem parte da agenda BC# de promoção da concorrência no mercado financeiro. Como vê a implementação da agenda neste ano, seus principais aspectos e o que esperar para 2020?
A Agenda BC está fundada em quatro pilares: competitividade, inclusão, transparência e educação. Esses temas dos quais estamos falando, como sandbox regulatório, open banking, duplicata escritural eletrônica e outros, fazem parte do primeiro pilar. Porém, outras medidas também estão previstas dentro desse “guarda-chuva” cujo objetivo é a ampliação da concorrência e a melhoria do ambiente de negócios no país. Cito, por exemplo, o Cadastro Positivo, cuja lei foi sancionada e regulamentada este ano.
Acredito que a agenda avançou em grau significativo em 2019, com o primeiro passo de diversas iniciativas que convergem tanto nas suas bases, quanto nos seus objetivos. A tendência é que, em 2020, essas medidas continuem sendo implementadas, inclusive porque gozam de apoio relevante no mercado e, também, no campo político, ao mesmo tempo em que não costumam gerar controvérsias de peso na esfera pública (como ocorre com outras propostas de maior impacto social). Não me sinto seguro, porém, de cravar uma previsão sobre a velocidade com que caminharão em 2020, já que a implementação ou a consolidação de algumas delas dependem do Legislativo e até mesmo de posicionamentos do Judiciário.
Ao mesmo tempo, temos uma proposta da mesma autoridade tabelando a cobrança de juros em um produto oferecido pelo mercado financeiro. Como esperar concorrência quando o governo define o preço do produto?
De fato, a limitação da taxa de juros do cheque especial parece, a princípio, ir de encontro com a agenda do Banco Central, ainda que tenha sido acompanhada de uma autorização para cobrança de uma nova tarifa para os usuários da modalidade. Há argumentos que devem ser considerados em relação a sua adequação enquanto medida de proteção do consumidor e, especialmente, da população mais pobre, como o próprio BC salientou. Por outro lado, também não se pode ignorar aqueles que enxergam, na limitação, uma intervenção estatal relevante no mercado financeiro, o que, como dito, aparenta fugir da agenda mais liberal do Banco Central. À parte a polêmica dessa decisão, acredito que a questão será resolvida de forma rápida, seja pelo diálogo das autoridades com as instituições financeiras, seja pela readequação do mercado. Apostaria, inclusive, nessa última via de solução, sobretudo diante das demais inovações que devem ser implementadas ainda em 2020 e em relação às quais, por ora, não vislumbro um grau elevado de intervenção. Penso que o episódio específico do tabelamento dos juros do cheque especial, por isso, não implicará efeitos tão significativos sobre o ambiente concorrencial do país.
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