“Sistema tributário brasileiro é complexo e pouco amigável para negócios”

“As regras aqui são complexas, não há tanta confiança no cumprimento delas"/Divulgação/Demarest
“As regras aqui são complexas, não há tanta confiança no cumprimento delas"/Divulgação/Demarest
Douglas Mota, especialista em direito tributário, fala sobre a saída da Ford do país e a urgente necessidade de uma reforma tributária
Fecha de publicación: 13/01/2021

O anúncio da saída da Ford do Brasil pegou o mercado de surpresa, mas levantou uma questão que precisa ser discutida há décadas nos país: a necessidade de uma reforma no sistema tributário.

É fato que muitas empresas sentem hoje na pele o chamado “Custo Brasil”. A expressão faz referência aos fatores negativos que afetam custos e despesas e que incidem diretamente no lucro das empresas e capacidade empresarial, o que limita o desempenho econômico nacional.

Em uma conversa com LexLatin, Douglas Mota, professor da Escola Paulista de Direito (EPD), do Instituto Brasileiro de Estudos do Direito da Energia (IBDE) e sócio da área tributária do Demarest Advogados defende que é preciso um cenário mais amigável para que as empresas tenham confiança na aplicação da própria tributação.

Como você avalia a saída da Ford do país?

Quando saiu a notícia logo na sequência veio uma série de comentários a respeito de benefícios fiscais. A Ford está no Brasil há mais de 100 anos, começou em 1919. De uns anos para cá houve a questão envolvendo benefícios fiscais, principalmente de estados que querem atrair novas fábricas. A Ford gozou de benefícios fiscais nos últimos anos, só que aparentemente eles não foram suficientes para manter a empresa no Brasil. É muito mais uma decisão estratégica.

A partir daí começamos a ouvir que o sistema tributário no Brasil é muito complexo. Mas é para todo mundo, como para as outras montadoras que estão por aqui. Hoje temos um sistema tributário totalmente anacrônico. Se você olhar a ideia original na Constituição Federal seria um sistema razoável. O problema é que depois veio um monte de “puxadinhos” e eles acabaram atrapalhando.

O benefício fiscal está inserido dentro da discussão de reforma tributária. Se você analisar com calma as propostas que hoje estão no Congresso temos a PEC 45, a PEC 110 e a proposta do Governo federal, que não é propriamente uma reforma tributária, é tão somente a reformulação de tributos que já existem, o PIS e a Cofins.

Você acha que a reforma tributária, do jeito que está tramitando, é algo benéfico e pode ajudar o país? As distorções que existem hoje assustam o investidor nacional e estrangeiro?

Até bem pouco tempo se dizia que só a Índia era pior que o Brasil, mas a Índia aprovou uma reforma tributária. As iniciativas que hoje estão no Congresso não atacam redução de carga tributária. Em alguns setores elas até sobem essa carga. Estão priorizando uma simplificação do sistema, o que é sensacional. Quais são as distorções hoje que têm que ser atacadas por estas reformas tributárias? Há três níveis de governo – federal, estadual e municipal - tributando e disputando carga tributária.

Quais são os principais complicadores para uma empresa como a Ford? É o ICMS que é estadual. Não por outro motivo eles abriram uma fábrica em Camaçari para ter benefícios fiscais. Mas não estamos falando só sobre carga tributária e sim de pagar tributos no Brasil. As distorções vêm da carga tributária: empresas com benefícios fiscais e outras sem e a partir dessa situação você cria uma litigiosidade absurda. Mas o fato de a empresa estar na Bahia gozando de benefícios fiscais não quer dizer que a vida dela é um mar de rosas.

A verdade é que a Ford enfrenta uma série de problemas para vender estes carros para o resto do país, porque é difícil cumprir obrigações tributárias. O Banco Mundial publicou um relatório de quanto se precisa trabalhar para pagar obrigações tributárias no mundo e o Brasil está lá no topo.

Além disso, a litigiosidade no Brasil é absurda, porque ficamos discutindo temas interpretativos. Muitas vezes você paga o tributo, mas a interpretação leva a uma situação em que você tem que escolher entre uma coisa e outra. E aí ao escolher uma delas você pode ser autuado e a empresa fica com um caminhão de dinheiro sendo discutido por anos, porque há falta de clareza.

Dentro de um tributo como o ICMS, que talvez seja o mais complicado deles, você tem litigiosidade, porque falta clareza e há sistemas de tributação diferentes. O sistema é muito complexo por diversos motivos e ele é muito caro. Algo que é para todos.

Qual será o futuro da nossa relação com as multinacionais nessa questão de tributos?

O sistema tributário brasileiro é muito complexo e pouco amigável para negócios. Para uma empresa como a Ford é muito difícil cumprir todas as obrigações e estar em compliance com todas as regras tributárias, cumprindo todas elas. Muitas vezes a empresa fica refém dessa própria situação.

A maior discussão tributária hoje é a questão do ICMS na base do PIS e da Cofins. Imagina para uma empresa dessa ter que passar por isso, algo que impacta. E junta outras tantas situações: a Ford tem dentro da sua operação exportação de mercadorias, algo que não é tributado no Brasil. Mas e todos os créditos que são acumulados pela compra? Significa dizer que isso não é moeda para você. Você acumula e não consegue escoar esses créditos. Isso mostra que precisamos urgentemente de uma reforma tributária e que ela tem de ir além de equalizar a carga,  precisa simplificar o sistema e deixar a vida da empresa menos complicada.

O quanto o governo e os legisladores têm capacidade para entender o que está acontecendo neste momento e reagir, criar um sistema que facilite a vida das empresas?

Os projetos que estão no Congresso de reforma tributária são bons, só que você cria algumas situações complicadas. Peguemos como exemplo o setor de serviços. O texto que está lá deixou o sistema mais simples. Por outro lado sobe demais a carga tributária do setor de serviços. Acho que precisamos discutir a reforma tributária de uma forma séria, mas não podemos penalizar setores, é importante achar um meio para equalizar isso.

Esses projetos também encerram benefícios fiscais, mas acho que travar totalmente a possibilidade dos entes federados permitirem benefícios fiscais talvez seja um erro. Eu entendo a lógica de retirar os benefícios. Você acaba com a guerra fiscal, algo que não é benéfico para o estado que concede isso a longo prazo, mas a verdade é que se você não tem o benefício talvez não consiga atrair empresas.

Os projetos que estão no Congresso dão uma solução para algumas questões, mas ainda não é suficiente. Talvez a PEC 110 seja mais avançada em relação a essa situação. O que nós precisamos dos nossos governantes e do Congresso é discutir a reforma. Se não é esse projeto qual é o projeto? Precisamos ter uma ampla discussão.

Quando teve a reforma tributária lá nos Estados Unidos se cantava a bola de que o Brasil estava ficando cada vez mais atrativo. E lá a reforma tributária pegou muito mais imposto de renda, não pegou a tributação de consumo como está acontecendo aqui no Brasil.

Temos que reconhecer que não está funcionando nosso sistema tributário. Há quem defenda que o problema não está no sistema, mas na aplicação. Precisamos achar uma alternativa para isso que não leve ao aumento de carga tributária. Queremos uma simplificação. Como fazer isso? Temos as soluções e é preciso acelerar esse processo. Estamos parados com uma reforma tributária desde o governo de Michel Temer, tem dois anos e meio.

E o quanto essa morosidade vai nos custar com a saída de outras empresas importantes e que geram empregos para o país?

Via custar caro. É claro que o Brasil com dimensão continental e com essa população enorme é muito atrativo, mas isso não está acontecendo, porque as regras aqui são complexas, não há tanta confiança no cumprimento de regras e você tem um sistema tributário que não é amigável. Imagina você explicar para o investidor estrangeiro como é o sistema aqui no Brasil? Todos eles ficam espantados.

Temos essa doce ilusão que somos um país avançado e também amigável para negócios. Os próprios sul-americanos percebem que o Brasil é uma grande bagunça.

O atual governo atrapalha essa questão da tributação no Brasil? Ou não?

Nos últimos 20 anos, tivemos diferentes intervenções no sistema tributário. O governo Fernando Henrique foi o que mais interveio, onde aconteceu a criação e o aumento de carga tributária. Ao mesmo tempo tivemos a Lei de Responsabilidade Fiscal, algo interessante para que os estados tivessem maior responsabilidade para não ter que aumentar a carga tributária.

Nos governos petistas não houve grandes intervenções nos sistemas de tributação. Tivemos coisas pontuais, mas sem grandes modificações. No atual governo não tivemos mudança tributária nenhuma. O que se esperava do atual governo era a reforma tributária, o que foi prometido lá no começo, mas estamos patinando.

Quais são as intervenções necessárias para mudar situações como as da Ford?

Entre advogados e acadêmicos se tem diferentes opiniões sobre o assunto. Há uma turma que defende uma reforma tributária urgente, a exemplo do que tem lá no Congresso, a PEC 45 e a 110 e que precisam de alguns ajustes. Há um outro grupo de pessoas que diz que não é preciso uma reforma tributária, é necessário que seja aplicado de forma correta o atual sistema. O que se alega para este grupo é que o sistema é bom, porém foram sendo criadas formas de não aplicar o sistema.

Olhando os dois lados fico em dúvida. Entendo a lógica do grupo que defende que o sistema é bom e precisa só de aperfeiçoamentos, mas acho que o sistema não está funcionando. O que precisamos é um senso de urgência para uma discussão séria sobre tributos no Brasil. Se vamos fazer essa reforma tributária que está no Congresso, que simplifica e aumenta a carga tributária, não tem como suportar isso.

Precisamos de um grande arranjo nacional para superar divergências, que pode ajudar os contribuintes a escoar créditos, a não ter a litigiosidade que se tem hoje e acessos mais fáceis para que você aplique o sistema tributário de uma forma consciente, clara e com bastante confiança. O governo hoje arrecada bem, mas gasta mal. Estamos discutindo reforma tributária desde 1988 e talvez tenha chegado o momento, a pandemia precipitou isso.

Num cenário de mundo globalizado as empresas geram seus lucros em países com taxas menores, produzem em locais com mão-de-obra mais barata e investem em nações onde a capacidade de consumo é maior. O sistema tributário atual sacrifica o futuro do país?

Nosso país tributa demais o consumo e pouco a renda. Talvez isso seja uma característica de país subdesenvolvido. O fato é que essa tributação do consumo afeta todo mundo: os mais pobres da mesma forma que os milionários - isso porque eles comem arroz, por exemplo.

Ao mesmo tempo, se você tributa a renda demais acaba tendo fuga de investidores, porque há sempre um país que tributa menos. Talvez o Brasil não abra mão de tributar o consumo, mas precisa de alguma forma equalizar isso, não pesar para todo mundo e simplificar para os contribuintes.

Quais são os desafios do direito tributário nos próximos anos?

Será conviver por algum tempo com dois sistemas, se houver a aprovação de uma reforma tributária. E preservar os direitos dos próprios contribuintes, que eles não tenham seus direitos invadidos. Os escritórios de advocacia terão que se adaptar a essa situação e melhor atender o cliente. Os advogados preferem assessorar seus clientes em operações e deals que no final das contas vão gerar resultados para o país e para as próprias empresas. É preciso ficar atento ao que está acontecendo e participar dessas discussões para garantir direitos.

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