Uma vida trans, apesar do regime venezuelano

“Eu não vou deixá-los tranquilos”, Tamara Adrián
“Eu não vou deixá-los tranquilos”, Tamara Adrián
Há 17 anos Tamara Adrián iniciou sua cruzada de resistência contra as instituições da Venezuela.
Fecha de publicación: 28/06/2021

“Como passa o tempo, não é verdade?” Tamara Adrián não espera resposta. Lembrou que há 17 anos e um mês iniciou uma cruzada de resistência contra as instituições da Venezuela. Se o regime reconhecesse sua identidade de gênero e seu nome, este direito seria desbloqueado para a comunidade da diversidade sexual no país.

Advogada, acadêmica, pesquisadora, doutora em Direito Comercial pela Universidade de Paris e especialista em Direito Comparado; Tamara Adrián, rígida, dá aulas na Universidade Central da Venezuela e, ao mesmo tempo, defende sua cadeira na Assembleia Nacional. Ela é deputada, por mais difusa que seja a divisão de poderes do país.

“Retrocedemos. Entre o ano 1982 e o ano 1998 este país foi o primeiro da região a reconhecer a identidade de cerca de 150 pessoas transexuais por via judicial, então o que aconteceu? Chega Chávez à presidência, convoca uma Constituinte e começa uma destituição massiva de juízes”, detalha.

Em 2015, Adrián se inseriu na história política da Venezuela e também na história latino-americana, ao ser a primeira deputada transexual eleita, ao ganhar os comícios, como suplente da lista do político Tomás Guanipa. Na rota geográfica da Venezuela LGBTQIA+ seu nome será mencionado várias vezes, inclusive, em 2016, a cineasta Elia Schneider dedicou um filme à sua vida. 

Treze anos antes de fazer o juramento como legisladora, Tamara Adrián mudou sua identidade sexual no estrangeiro e em 2004 introduziu um habeas data diante da Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justiça para que seus documentos oficiais consignassem o nome que ela mesmo escolheu. Seu expediente acumula milhares de folhas e continua sem ser resolvido. Neste processo interveio a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). 

O panorama do país é assim: desde 2010 a Venezuela reconhece a mudança de nome para qualquer pessoa. Está na Lei Orgânica do Registro Civil, no artigo 146. Toda pessoa pode mudar seu nome uma vez, se for infame, sujeita ao escárnio público, ameaça sua integridade moral, honra e reputação ou não corresponde ao seu gênero, afetando assim o livre desenvolvimento de sua personalidade.

“Mas é que as solicitações não procedem. É algo que não se reconhece”, afirma a acadêmica e ativista pelos direitos igualitários.

Cabe ressaltar que, há décadas, quando o país decidiu reconhecer a identidade de qualquer pessoa, a regulação era patologizante: requeriam exames médicos, psiquiátricos e até operações genitais. Embora as solicitações sequer sejam permitidas, as pessoas trans devem apresentar todos esses documentos para testar sua sorte.


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A Venezuela permaneceu presa a esse conceito patologizante, enquanto países como Argentina, Colômbia, alguns estados do México, Bolívia, Equador, Brasil, Uruguai, Costa Rica e Chile se livraram de preconceitos e aceitaram a autopercepção.

Ações bloqueadas

Em 2016, como deputada, Adrián promoveu uma reforma à Lei Orgânica de Registro Civil que incluía a concessão de uma nova certidão de nascimento para pessoas trans. Nessa proposta, bastava o autorreconhecimento de quem estava promovendo a ação. Mas essa norma não foi aprovada. 

“Nenhum caso de justiça para diversidade sexual foi resolvido. Nenhum caso que tenha a ver com identidade de gênero. Além disso, está bloqueada a batalha jurídica das ações estratégicas, minhas e de outras pessoas, isso porque -entre outras coisas- a Venezuela é o único país da região que criminaliza as relações entre pessoas do mesmo sexo. O código de justiça militar penaliza com pena de reclusão de um a três anos as chamadas ‘relações contra a natureza’ para os integrantes das Forças Armadas, que podem ser entre eles ou com terceiros”, explica a advogada.

Há uma ação de inconstitucionalidade sobre essa norma, também introduziram uma ação de reconhecimento dos direitos ao casamento igualitário e uma outra, coletiva, interposta em 2012, por pessoas trans para o reconhecimento da identidade de gênero com os novos padrões internacionais não patologizantes. Entre outros expedientes congelados, está a ação da Tamara Adrián sobre o reconhecimento da sua identidade.

“O que está acontecendo?”, diz para começar uma explicação, o vício dos professores: “a igreja evangélica permeia todas as áreas do regime. Por exemplo, quando Alejandro Bertucci, o candidato presidencial, não venceu Nicolás Maduro, ele ganhou uma cadeira na Assembleia, ampliando a representação de sua igreja. Sempre esteve muito próximo do regime, fazendo negócios com o Chavismo. Ele, junto com outras igrejas evangélicas, coletou assinaturas contra o casamento igualitário, a identidade de gênero e os julgamentos que estão no Supremo Tribunal Federal e continuam clamando pelo ódio", detalha e acrescenta "quando Maduro diz que tem que ser discutido o casamento igualitário, Bertucci responde que não porque isso é contrário à lei de Deus e não pode ser discutido e aí vem a vice-presidente da Assembleia, Iris Varela, e diz que não seria a favor do casamento igualitário porque isso não condiz com a lei de Deus”.

HIV

A luta LGBTQIA+ se transformou em sobrevivência. Na diáspora venezuelana, há membros da comunidade que acham necessário viajar a outros países para continuar com suas terapias anti-retrovirais (TARV).

“Desde 2016, a Venezuela não importa nenhum retroviral. Nos anos de 2017 e 2018, essa situação se complicou e, como não há números oficiais, o país continuou a ser considerado um dos que compõem o bloco de renda média alta, portanto, não se qualificou para ajuda do Fundo Global (UNAIDS). A sociedade civil se organizou e encaminhou ao fundo um relatório mostrando a realidade: que não havia TARV e que o número de mortes por HIV era muito semelhante ao dos anos 90, 80, um percentual muito alto de mortalidade entre os infectados”.

O Fundo Mundial autorizou um envio de emergência humanitária para levar à Venezuela antirretrovirais até dezembro deste ano. De acordo com Adrián, durante o primeiro ano distribuíram com supervisão da Organização Mundial da Saúde (OMS), mas, pela pandemia, a distribuição se deteve por problemas de distribuição, por não conseguir gasolina e outros problemas de mobilidade. Já foram 6 meses desde a última distribuição.

“Aqui em um mês tem medicamento e no outro não e inclusive podem criar resistência a estes medicamentos”

Em janeiro deste ano, o regime prendeu cinco membros de uma organização não governamental chamada Azul Positivo. Foram acusados ​​de associação criminosa, uso indevido de meios eletrônicos de pagamento e fraude. A ONG entregava cartões pré-pagos para ajudar as pessoas com HIV a comer. “Os índices de desnutrição são muito altos”, observa a advogada.


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A detenção foi classificada como arbitrária e justificada para discriminar esta população. A Organização das Nações Unidas (ONU) instou o regime a libertar os ativistas, bem como a facilitar o trabalho das ONGs.

“Isso dói neles, podemos ser insignificantes para o regime pelo número de pessoas envolvidas, mas que falem da Venezuela assim, no cenário internacional, é outra coisa”.

Tamara Adrián faz catarse tocando um pouco de jazz em seu Hollow Body. E ela não está resignada. Ela diz que estará lá para que o mundo veja o que está acontecendo na sua natal Venezuela. "Eu não vou deixá-los tranquilos", sentenciou.

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