Inovação na advocacia: o que a caneta BIC pode nos ensinar?

A tecnologia, como sempre foi, não é o fim, mas o meio. /Flickr, John Cooper.
A tecnologia, como sempre foi, não é o fim, mas o meio. /Flickr, John Cooper.
Como me diferenciar da concorrência para que o cliente me escolha?
Fecha de publicación: 07/03/2023

"Às vezes, é só fazer o básico direito", foi assim que a clássica caneta BIC foi apresentada em um anúncio de alguns anos atrás.

A origem da caneta BIC remonta a 1950, quando o francês Marcel Bich criou a "BIC Cristal", com pouquíssimas modificações visíveis, mas de mãos dadas com importantes inovações, a caneta BIC continua presente em nossas vidas. Algumas dessas modificações são o pequeno orifício na lateral que permite trabalhar em aviões e evitar o derramamento de tinta, a tinta que evita o derramamento, a esfera de menos de um milímetro de diâmetro que permite a escrita fluida ou o orifício na tampa para evitar que crianças engasguem ao engoli-lo. Todas elas fizeram com que esta caneta esteja na vanguarda do mercado por mais de 70 anos.

A história da caneta BIC não só se assemelha à da advocacia, como também nos permite tirar algumas lições em um momento em que se fala em “inovação jurídica”.

Atualmente, muitos advogados e advogadas estãohipnotizados pelo ChatGTP, um sistema de chat com inteligência artificial capaz de responder a tudo o que lhe é pedido. E também ficamos sabendo da nova ferramenta da Allen & Overy, batizada de "Harvey", que permite redigir textos jurídicos com a ajuda de inteligência artificial.

Seguramente, um advogado prestes a se aposentar fica espantado com essas novas tecnologias, mas também deve relembrar com nostalgia os dias em que deixou para trás a máquina de escrever para usar o computador e a Internet.

O maior avanço tecnológico na produção de documentos jurídicos ocorreu nos últimos 25 anos do século XIX, com o desenvolvimento e comercialização da máquina de escrever mecânica. Durante séculos, a principal ferramenta para a produção de documentos jurídicos foi a caneta, com a qual o escriba levava horas para redigir um pequeno documento. A máquina de escrever mais que dobrou a velocidade de produção de documentos legais. Foram anos, sem dúvida, de uma importante “inovação” no mundo jurídico.

Essas mudanças do final do século XIX trouxeram alterações significativas na profissão jurídica (deslocaram escriturários, melhoraram a eficiência e incorporaram mulheres como datilógrafas em escritórios de advocacia), mas o serviço jurídico, ou seja, o que os advogados faziam e ofereciam a seus clientes, não mudou.

Mais de 100 anos se passaram e os advogados continuam fazendo o mesmo, embora amparados por diferentes tecnologias. Hoje é a inteligência artificial, ontem foi a máquina de escrever.

Após a crise financeira de 2008, a advocacia acreditava estar vivendo um momento de profunda transformação. Alguns chegaram a anunciar a morte do Big Law (Ribstein, 2010), nome dado ao direito empresarial de elite, em que operam grandes escritórios de advocacia. Foram anos em que se ouviu o “mais por menos” de Richard Susskind e se previu a chegada das ALSPs como a grande ameaça para as firmas tradicionais.

De acordo com o relatório “Alternative Legal Services Providers 2023”, publicado pela Thomson Reuters, o mercado ALSP cresceu e ultrapassou os US$ 20 bilhões. Para um mercado que fatura perto de 800 bilhões de dólares, a participação das ALSPs ainda é muito marginal.

Em 2019, chegou a COVID e se ainda esperávamos pelas mudanças radicais anunciadas após a crise de 2008, surgiram novos prognósticos da transformação da advocacia. O teletrabalho, a tecnologia e ainda uma maior sensibilidade dos sócios para com as suas equipes mantiveram-nos hipnotizados durante vários meses.

Apesar de vivermos uma época de profundas mudanças, a prudência parece ser uma boa aliada e o ensinamento que a tradicional caneta BIC nos ensina pode ser uma boa lição para enfrentar os próximos anos.

Atualmente, Richard Susskind, moderando suas previsões, fala de uma "transformação incremental permanente e não disruptiva". Você não o ouve mais dizer que a indústria jurídica e o mundo jurídico não serão os mesmos na próxima década (algo que ele disse há mais de 20 anos), mas agora ele fala sobre mudanças incrementais.

Essa mudança incremental é o que a indústria jurídica tem experimentado desde o final do século XIX, e não é novidade para os advogados.

Assim como a caneta BIC, os escritórios de advocacia permanecem os mesmos desde suas origens no final do século XIX, com pouquíssimas modificações, mas de mãos dadas com importantes inovações (máquina de escrever, computador, internet, banco de dados, telefonia, softwares de gestão inteligência artificial, entre outros).

Ultimamente, o setor jurídico está obcecado com uma ideia de inovação que não é apenas errada, mas também perigosa. A saber: a ideia de que inovação é tecnologia.

A inovação é um processo constante para melhorar algo. E os escritórios jurídicos têm dois desafios principais para os próximos anos nos quais devem focar seu processo inovador. Primeiro, como lidar com um mercado global muito mais competitivo? E segundo, como atrair e reter talentos?

Não se trata de inventar uma maneira de fazer algo diferente; trata-se, como fez a caneta BIC, de “fazer o básico direito”. Isto é: como me diferenciar da concorrência para que o cliente me escolha? E como oferecer aos advogados e advogadas recém- formados um local de trabalho que lhes permita desenvolver-se profissionalmente, compatibilizar o trabalho com outras esferas da vida e um modelo de negócios que deixe para trás a obsessão por horas faturáveis ​​e o clássico 'up or out'?

A tecnologia, como sempre foi, não é o fim, é apenas um meio que ajuda a melhorar as coisas.

*Rafael Mery é diretor LATAM da Mirada 360º. E-mail de contato: [email protected]

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