O juiz te escuta: a transformação digital começa com a transformação das pessoas

A juíza suprema em exercício Elvia Barrios fala sobre a ferramenta El Juez Te Escucha. Extraído da conta oficial do Twitter do Judiciário.
A juíza suprema em exercício Elvia Barrios fala sobre a ferramenta El Juez Te Escucha. Extraído da conta oficial do Twitter do Judiciário.
O que acontece com os cidadãos em necessidade de manter contato com os tribunais e entender seus processos judiciais?
Fecha de publicación: 16/05/2022

O ser humano, suas organizações e sociedades sempre foram transformados pelo trabalho da ciência e da tecnologia. A roda, a eletricidade e a internet são apenas três exemplos de elementos que geraram essas variadas e profundas transformações, das quais nada escapa. Hoje assistimos à transformação digital que, fiel à história, renova sujeitos, instituições e sociedades. As pessoas são um elemento central, o mais importante de qualquer transformação.

Mas vamos ao nosso. Essa eterna força transformadora, que emerge e retorna, atinge todas as organizações dos sistemas de justiça. Isso ficou evidente na América Latina em relação à pandemia que ainda nos afeta. Mas eis um duplo problema: à enorme lacuna digital preexistente na relação entre os cidadãos e o Estado, agregou-se a necessidade de atender a uma cidadania digital com um ritmo evolutivo sem precedentes.


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Diante do cenário de crise sanitária, a resposta foi nada mais nada menos que saltar para a web. Tabelas de peças eletrônicas, novos aplicativos, bots e formulários online formaram um batalhão valente, como apurado e não sistemático. Mas o principal inimigo deste digno batalhão pode ser as pessoas. Sim, dentro e fora das organizações: backstage management (do trabalho dos nossos trabalhadores, dos seus processos, de como agregam valor) e frontstage (da experiência dos cidadãos) são a nova prioridade. Estamos servindo a eles?

A experiência judicial peruana mostra dois exemplos. Uma delas tem a ver com a ferramenta nacional “O juiz te escuta” (EJTE), a que já me referi em artigo anterior. Nesta ocasião iremos rever as suas consequências. Naquele momento, explicamos que uma das respostas à aplicação do EJTE foi o surgimento de ferramentas digitais locais, iniciativas saudáveis de alguns tribunais superiores (que em número de 29 dividem territorialmente os poderes do Poder Judiciário peruano). Agora, o que está acontecendo com esses aplicativos locais?

Tanto a ferramenta EJTE como outras visam manter a comunicação direta entre os órgãos jurisdicionais e os cidadãos. No entanto, como foi anunciado, parece que estão lutando contra um inimigo comum e anunciado: o povo. Esses aplicativos não estão voltados apenas para as pessoas que devem operá-los, mas também para aqueles que devem usá-los. Como assim? Em seguida, o novo problema.

Funcionamento do EJTE

O paradigma ou ponto de partida dessas ferramentas locais articula a localização do juiz, não o coloca no centro de tudo, o que está sendo parcialmente rejeitado pelo paradigma reinante. Vamos explicar isso. Tradicionalmente, o juiz tem sido o agente mais importante no exercício da função jurisdicional. Isso não é ruim, pelo contrário, faz parte do núcleo da referida função estatal. No entanto, o juiz não é mais importante do que a função em si. Portanto, tratando-se de cumprir as finalidades da função em um ambiente em mudança, a figura do juiz deve adotar novas facetas, uma das quais pode ser sua não intervenção ou sua participação parcial ou secundária em determinados aspectos. Uma dessas áreas se apresenta na comunicação digital e isso é observado de forma mais clara em relação à pandemia e ao desafio que o serviço público representa.

Nesse sentido, as ferramentas locais priorizam a comunicação antes da participação do juiz, especificamente assumem que na troca de informações com os cidadãos não devem aparecer recebendo ou entregando, mesmo quando participam de sua gestão nos bastidores. Embora seja uma proposta renovadora, dentro da organização judiciária enfrenta o paradigma em que se formaram os trabalhadores judiciários: aquele que sempre colocou o juiz no centro. Os pedidos dos cidadãos são distribuídos por um funcionário administrativo, a quem muitos trabalhadores não respondem ou demoram a responder por não ser juiz.

E o que acontece com os cidadãos? Muitos deles, na sua compreensível necessidade de se manterem em contato com os tribunais e de conhecerem os seus processos judiciais, fazem o mesmo pedido duas ou mais vezes seguidas, levantam-no através do pedido nacional e também de alguns locais, o repetem perante o órgão de controle e até alguns também buscam informações pessoalmente na sede judiciária.

O comportamento descrito de trabalhadores e cidadãos, que não generalizamos, prejudica ambos os grupos de pessoas. Para os primeiros porque aumenta os pedidos de atenção e onera ainda mais o seu trabalho. Aos segundos porque distrai, confunde e atrasa a resposta que procuram. Em geral, acarreta custos de tempo, de outros recursos e de legitimidade. E tudo isso porque há pessoas que não sabem assumir um papel em uma etapa de transformação. Até agora a experiência que nos inspira desta vez.

Você já viu histórias semelhantes em outros sistemas de justiça ou organizações estatais? Talvez o mercado jurídico privado apresente comportamento semelhante? No que nos diz respeito, o que vemos é algo muito concreto: a transformação digital é, acima de tudo, uma transformação de pessoas. Você tem que trabalhar primeiro e sempre com eles. Não fazer isso o fará seguir no caminho errado.

O trabalho com as pessoas deve começar na escola e deve continuar ao longo do caminho formativo de sua cidadania digital (veja nosso artigo, especialmente o nº 2: “A variável educacional essencial”), trabalho que deve atender aos critérios da andragogia e adotar as formas adequadas nos diversos órgãos estatais ou no mercado jurídico privado.


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Por outro lado, também observamos que, para obter resultados verdadeiros e sustentáveis na sociedade, é preciso trabalhar com as pessoas de forma multidisciplinar, multissistêmica e permanente. O que é preciso é uma política pública que invista no futuro, uma política de transformação digital focada na formação de pessoas como agentes de mudança; assim como uma iniciativa privada que observa o novo cenário, que imagina novos caminhos e que gera oportunidades para essas pessoas.

Nossas sociedades não se interessam o suficiente por uma tarefa com essas características (prefere-se atender a atividades de pouca ou nenhuma importância), os estados não desenvolvem uma política pública dessa extensão (porque dentro deles, em diferentes medidas, extremismo, intolerância e confronto, longe de qualquer consenso), e muitos cidadãos consomem diariamente versões desinformantes nas redes sociais. A transformação digital é uma oportunidade: vamos treinar pessoas, o que esperamos?

*Javier Jiménez Vivas é advogado, magistrado e juiz civil (Peru). Pesquisador em questões de transformação digital nos campos social e jurídico. Estudou em universidades do Peru, Espanha e Itália. Membro da ALIL.

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