É triste ver o Cade transformado em moeda de troca em barganha política

Credito Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Credito Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Para Lucia Helena Salgado, ex-vice-presidente do tribunal, composição majoritária de indicações não-técnicas é um risco
Fecha de publicación: 30/08/2019
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Causa preocupação a indicação de nomes sem experiência e conhecimento prévio de antitruste para compor o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), pois a falta de familiaridade leva a uma abordagem conservadora e defensiva de temas já estudados e aplicados ao longo dos últimos anos, analisa a economista Lucia Helena Salgado e Silva, ex-vice-presidente do tribunal administrativo, em entrevista ao LexLatin. 

Lucia Helena Salgado, ex-vice-presidente do tribunal de CADE

Sócia da LHS Economistas Associados, Lucia é pós-doutora em economia pelo IDEI/TSE (Institut d'Économie Industrialle, Toulose School of economics), doutora pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), professora associada, chefe do Departamento de Análise Econômica e coordenadora da pós-graduação em Direito e Economia da Concorrência da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Exerceu dois mandatos de conselheira do Cade e foi vice-presidente da autoridade da concorrência (1996-2000). 

Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro indicou o juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, Luiz Augusto Azevedo de Almeida Hoffman, o doutor em economia pela Universidade de Chicago Luiz Henrique Bertolino Braido e o subchefe de política econômica da Casa Civil, Sérgio Costa Ravagnani, para assentos no tribunal administrativo do Cade.

O colegiado é responsável pelo julgamento de fusões e aquisições complexas, além de dar a última palavra sobre acordos de leniência e termos de compromisso assinados por empresas investigadas por conduta anticompetitiva. 

Lenisa Rodrigues Prado foi indicada para a Procuradoria do Cade, que defende as decisões do tribunal no Judiciário e também acompanha acordos de leniência e termos de compromisso. Ela é ex-conselheira do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), um órgão do Ministério da Economia que julga queixas de contribuintes contra a Receita Federal. 

Nesta quinta-feira, em despacho publicado no Diário Oficial, Bolsonaro modificou a indicação, nomeando a ex-conselheira do Carf para o tribunal administrativo. Para a procuradoria-geral, foi reconduzido o atual ocupante do cargo, Walter Agra Jr. 

O atual superintendente-geral, Alexandre Cordeiro, também foi escolhido para continuar no cargo. São dele as decisões sobre a ampla maioria das fusões e aquisições, por se tratarem de operações mais simples, muitas vezes sem impacto comercial. Também é a Superintendência Geral que negocia acordos de leniência e termos de compromisso com empresas investigadas. 

Desde julho, o tribunal não tem quórum para julgar operações ou acordos. Antes de assumirem os cargos, todos os indicados serão submetidos a sabatina na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado e devem ter seus nomes aprovados no colegiado e, depois, pelo Plenário da Casa. 

Como a sra. vê os nomes escolhidos para o tribunal administrativo e procuradoria do Cade?

Sempre causa preocupação a indicação de nomes sem expertise, jurídica ou econômica, na área antitruste. Não é novo esse fenômeno, uma ou outra indicação política sempre houve, desde o governo Fernando Henrique Cardoso. O risco está em uma composição majoritária de indicações não-técnicas.

Os nomes selecionados para o Cade não possuem experiência em direito antitruste. Diante da nomeação recente de outros integrantes sem vivência prévia na área, que impactos podemos esperar na atuação do conselho?  

O tema antitruste é complexo, envolve metodologia própria, desenvolvida ao longo de século pela interação entre o direito e a economia, a evolução de longa jurisprudência em temas para os quais respostas simples são sempre erradas.

A falta de familiaridade com a matéria leva a posturas defensivas, conservadoras, ao tempo em que desincentiva formulações criativas e inovadoras, particularmente necessárias na economia 4.0, onde a concentração de poder econômico e seu exercício abusivo vem atingindo escalas jamais vistas.

Como vê a recondução do superintendente Alexandre Cordeiro?

A recondução não surpreende, diante da prevalência no Senado da coalizão política denominada “Centrão”, composta, entre outros, por PMDB (que respondeu pelas indicações recentes no governo Temer) e por PP (que responde pela indicação em questão). De todo modo, é triste ver o Cade, que sempre se notabilizou por sua independência técnica, transformado em moeda de troca em barganha política.

O Cade funcionará sob um governo com viés liberal, de menor interferência do Estado na economia. Que mudanças isso pode trazer para a atuação do tribunal em casos de fusões e aquisições? 

A alcunha “liberal” é pouco precisa, não obstante ser a adotada pela equipe econômica. Seria mais correto identificar a orientação atual como a leitura desenvolvida nos anos 70 na Universidade de Chicago (o que se convenciona chamar de Old Chicago, em contraste com a evolução do conhecimento econômico até mesmo naquela universidade), popularizada por Milton Friedman, para quem o mercado sempre encontra solução para os seus problemas, de modo que a prescrição de política é sempre “não interfira”.

Essa visão de mundo, que comandou as grandes decisões nas últimas três décadas nos EUA e onde exerceu influência, está por trás da espetacular concentração de poder de mercado, de riqueza e aumento de desigualdades, além da estagnação secular que assombra as economias de mercado.

A prescrição dessa visão “Old Chicago” para o antitruste é: concentração de mercado é a seleção natural dos mais fortes; o único mal-feito a combater é o cartel. Que pode ser resolvido com um generoso acordo de leniência (na versão brasileira, com os líderes dos cartéis, bizarrice introduzida por uma emenda no Senado Federal à atual lei 12.539/11).

Como essa, curiosamente, tem sido a posição majoritária no Cade desde os tempos do governo Dilma (todo o apoio a “campeões nacionais” e “combate aos cartéis”), não vejo no horizonte qualquer mudança na condução da defesa da concorrência no Brasil.

Essa tendência mais liberal  pode influenciar o modo como o Cade atua na investigação de condutas e assinatura de acordos?

Em parte já respondi na pergunta anterior. Não vislumbro mudanças, o que é inquietante. O grande tema antitruste no mundo hoje é como coibir e dissuadir (único propósito legítimo de punir) condutas anticompetitivas - de exclusão de concorrentes e exploração de poder de mercado - por parte de virtuais monopolistas em mercados de dois lados (two-sided markets, como as plataformas digitais) e em mercados de serviços públicos e financeiros, onde são extensas as economias de rede. É todo um universo de novas questões em debate, a requerer inquietação intelectual e espírito investigativo, coisa que a crença no dogma do livre mercado não é capaz de estimular.

Quais os principais desafios para os futuros integrantes do Cade nos próximos dois anos?

Os principais desafios estão já na mesa: a) reconhecer que a justificativa baseada em “eficiência econômica” para fusões e aquisições (seja no mercado doméstico ou global) não se sustenta para grandes corporações que já atingiram escala ótima há muito; há que identificar verdadeiras “eficiências sinergéticas” para justificar fusões; b) reconhecer que poder de mercado não é exercido exclusivamente por “preços altos”, mas sobretudo por imposições de condições comerciais lesivas a fornecedores, distribuidores, funcionários e consumidores, além de inviabilizar concorrentes que poderia oferecer melhores soluções; c) rever aprovações de fusões que, induzidas ao erro, geraram palpáveis perdas de bem-estar em vez dos benefícios prometidos. 

Apostas nesse cenário de enfrentamento de desafios não parece, contudo, ser a postura mais realista.

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