A pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2 afetou, afeta, e continuará afetando as relações contratuais pelo futuro (não tão) próximo. Centenas de artigos já foram escritos sobre o tema, e as expressões “caso fortuito” e “força maior” tornaram-se lugar comum na (re)discussão de obrigações recíprocas assumidas entre as mais diversas partes.
Nesse contexto, juntamente com as medidas voltadas a evitar o colapso do sistema de saúde, o poder público – notadamente o governo federal – deve adotar medidas estruturais para evitar também o colapso do Poder Judiciário, que não tardará a ser atingido pela avalanche de processos ajuizados com a finalidade de flexibilizar/fazer valer os dispositivos dos pactos firmados anteriormente.
Sem prejuízo da relevância dos demais, entende-se que a adoção das medidas acima mencionadas deve ser iniciada por um dos elementos mais críticos da infraestrutura de qualquer país: o setor elétrico.
Não se ignora que medidas relevantes foram, de fato, tomadas, tais como a edição da Medida Provisória nº 950/2020 e da Resolução Normativa nº 878/2020 da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e a tramitação do Projeto de Lei nº 1.179/2020. No entanto, tais medidas afetam, essencialmente, as relações entre as distribuidoras e os consumidores cativos, ou seja, não atacam a fundo a situação dos consumidores livres, que celebraram contratos de compra e venda de energia com o agente setorial de sua escolha, em condições negociais diferenciadas.
Cumpre notar que os PPAs (Power Purchase Agreement - acordos de compra e venda de energia limpa de longo prazo de um ativo específico e a um preço prefixado entre um desenvolvedor de energia renovável e um consumidor) celebrados nessa modalidade tendem a seguir o modelo “take or pay”, ou seja, os consumidores se comprometem a pagar por um volume mínimo de energia, ainda que não seja efetivamente consumida, como contrapartida pelas tarifas reduzidas.
Muito embora seja perfeitamente possível argumentar que, em situações normais, o risco da demanda teria sido corretamente alocado aos consumidores, é público e notório que o mundo todo nunca passou por uma conjuntura tal como a atual.
Considerando o cenário acima exposto, não é de se surpreender que grandes consumidores (ex: shopping centers) já vêm, sistematicamente, obtendo decisões judiciais – em caráter liminar – para efetuar pagamentos proporcionais apenas ao consumo real de energia, ainda que no âmbito de contratos “take or pay”.
Aliás, a relativização de PPAs é um fenômeno de certa recorrência em épocas de turbulência econômica e/ou política. Por exemplo, na crise energética da Califórnia de 2001, houve várias disputas judiciais sobre o impacto da súbita e inesperada elevação do preço da energia, resultando na revisão dos PPAs. Mais recentemente, temos notícia de que PPAs estão sendo questionados na Índia, porque o custo do carvão fornecido pela Indonésia aumentou substancialmente.
Superadas as colocações (também lugar comum) de que as partes devem agir de boa-fé e reconhecer as circunstancias excepcionais vivenciadas por ambas, em busca de uma solução amigável, também é forçoso reconhecer que mesmo as grandes distribuidoras de energia, com milhões de consumidores, não estão imunes aos impactos financeiros decorrentes da abrupta queda de demanda e renegociação em massa dos contratos firmados.
Assim, reputa-se ser urgente que o Governo Federal tome as medidas adequadas para fomentar e viabilizar a flexibilização das regras dos PPAs, sem que tal medida prejudique a sobrevivência seja das empresas dentro e fora do setor elétrico.
*Bruno Vianna Espírito Santo é advogado das área de Direito Administrativo, Infraestrutura, PPP e Financiamento de Projetos do escritório Azevedo Sette Advogados.
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