As distorções que a união entre Whatsapp e Cielo podem provocar no mercado brasileiro

A cooperação entre órgãos reguladores relacionados a tais mercados é essencial/Pixabay
A cooperação entre órgãos reguladores relacionados a tais mercados é essencial/Pixabay
Resultado da operação pode criar vantagens competitivas impossíveis de serem alcançadas pelos demais concorrentes.
Fecha de publicación: 30/06/2020
Etiquetas: Brasil

Num primeiro momento, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) impôs medida cautelar para suspender a operação de parceria, no Brasil, entre Facebook e Cielo, na qual as empresas estabelecem relação comercial para viabilizar comércio credenciado junto à Cielo, com o recebimento de pagamento por meio da plataforma do WhatsApp Business.

A medida cautelar contra a parceria foi retirada nesta terça-feira (30). O Cade afirmou, porém, que vai continuar investigação sobre o acordo, porque há vários indícios de irregularidades, que podem provocar distorções no mercado brasileiro de pagamentos.

Um dos mercados afetados pela operação é o de credenciamento (adquirência) de transações, em que a Cielo possui atuação. Tal mercado está na mira do Cade há tempos: de 1995 a 2019, o Cade julgou 108 atos de concentração relacionados ao mercado de instrumentos de pagamento e iniciou 14 investigações envolvendo temas como acordos de exclusividade, recusa em contratar e venda casada, por exemplo, práticas estas que envolviam os 23 principais participantes da indústria de pagamento.

De acordo com a autoridade antitruste, a elevada participação detida pela Cielo no mercado nacional de credenciamento e captura de transações (acima de 40%, com base no número de terminais), ocupando o primeiro lugar no país, acende um sinal de alerta.

Por sua vez, o Whatsapp, que pertence ao Facebook, possui uma base de 120 milhões de usuários ativos no Brasil, seu segundo maior mercado, perdendo para a Índia. Segundo o Cade, essa base significativa seria de difícil criação ou replicação por concorrentes da Cielo, sobretudo se o acordo envolver exclusividade entre elas.

Assim, o Cade analisa o fato de que a posição dominante da Cielo, somada à significativa base de usuários do Whatsapp, poderá resultar em um grau de vantagens competitivas a estas empresas que seria impossível de ser alcançado pelos demais concorrentes.

Outras questões

Outro risco concorrencial apontado pelo Cade se refere à participação de grandes bancos no arranjo entre Facebook e Whatsapp, pois o Banco do Brasil e Bradesco, por exemplo, são acionistas da Cielo. Assim, a eventual oferta da nova solução apenas para usuários que possuem cartões emitidos por esses bancos pode gerar distorções no mercado bancário.

Controle prévio do Cade

Ainda há uma escassez de informações disponíveis sobre essa operação para uma avaliação mais adequada do tema. Porém, independente de a operação ser de notificação obrigatória ou não ao Cade, o Conselho tem a faculdade de, no prazo de um ano a contar da respectiva data de consumação da operação, requerer a submissão do negócio, na forma de um ato de concentração, se entender que se trata de operação que pode resultar em riscos concorrenciais ao mercado (Lei n. 12.529/11, art. 88, § 7º).

Nesse sentido, o Cade já instaurou um "processo administrativo para apuração de ato de concentração" (Apac). Seria curiosa a omissão das empresas em não notificar essa operação às autoridades competentes, sabendo – por hipótese - de sua obrigatoriedade, pois os players envolvidos não poderiam alegar desconhecimento da lei, já que estes, por serem recorrentemente avaliados pelas autoridades concorrenciais mundo afora, têm conhecimento da competência dos órgãos antitruste para tipos específicos de parcerias.

Cooperação entre reguladores

O Banco Central (Bacen), em linha com a medida adotada pelo Cade, também determinou que a Visa e a Mastercard suspendessem os pagamentos por meio do WhatsApp, uma vez que a realização das transações sem a supervisão adequada pode gerar danos irreparáveis ao Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). E hoje é essa medida que impede o início das operações no Brasil.

Vale ressaltar, em paralelo, que, recentemente, a Justiça alemã confirmou decisão adotada pelo órgão antitruste daquele país (Bundeskartellamt), que impôs restrições ao Facebook à coleta de dados de seus usuários feita sem prévio consentimento. Além disso, há investigações instauradas recentemente por diversas jurisdições sobre condutas potencialmente abusivas praticadas pelas Big Techs, bem como fóruns internacionais vêm debatendo sobre os efeitos na concorrência decorrentes do elevado e ascendente poder de mercado que estas superplataformas detêm.
 
Desafio
Autoridades antitruste ao redor do mundo possuem o desafio de suprir a falta de conhecimento adequado e suficiente sobre as peculiaridades de mercados dinâmicos e inovadores. Essas características colocam à prova se a análise tradicional antitruste é capaz de identificar, de maneira efetiva, todas as características e efeitos das estratégias dos players desses mercados. Portanto, o dilema que se impõe diz respeito ao risco de uma regulação/intervenção desmedida não só mitigar abusos, mas também impactar negativamente a inovação.

Considerando a complexidade da análise de mercados digitais, a cooperação entre órgãos reguladores relacionados a tais mercados é essencial. Muito se discute sobre a importância da transparência na gestão de dados e a necessidade de existir uma autoridade competente para regulação de dados — os quais são os ativos mais valiosos quando o assunto é economia digital. Nesse sentido, a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados brasileira é urgente.

*Flávia Chiquito dos Santos é advogada do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

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