O TCU e o Novo Marco do Saneamento

O Novo Marco Legal do Saneamento valoriza instrumentos de cooperação na gestão do serviço de saneamento/Fotos Públicas
O Novo Marco Legal do Saneamento valoriza instrumentos de cooperação na gestão do serviço de saneamento/Fotos Públicas
Será preciso que o Tribunal adeque sua atuação para garantir autonomia aos titulares do serviço, órgãos de controle e para assegurar à própria ANA sua missão institucional.
Fecha de publicación: 27/07/2020
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A Lei nº 14.026/2020, que modifica substancialmente o marco legal do saneamento, acrescentou novos componentes à já complicada relação entre a estrutura federativa do estado brasileiro e a prestação do serviço público de saneamento básico.

 

No plano da regulação, havia cerca de cinquenta agências reguladoras estaduais e municipais que eram responsáveis pela fiscalização dos serviços públicos concedidos. A partir de agora, todas elas deverão observar as diretrizes que serão elaboradas pela Agência Nacional de Águas (ANA). Com isso, a ANA passa a exercer um papel de uniformização, concretizando uma política nacional aplicável a todos os entes federativos.

 

Trata-se, contudo, de um papel sui generis, já que, conforme decidido pelo STF quando do julgamento da ADI nº 1.842/RJ, o serviço público de saneamento é de titularidade dos municípios, podendo ser regionalizado por meio do estabelecimento de regiões metropolitanas. Ou seja, a prestação do serviço insere-se na esfera de competência de estados e municípios, mas não da União.

 

Embora sob o Novo Marco os entes locais e regionais mantenham a titularidade sobre o serviço, sendo responsáveis pelas suas respectivas regulação e prestação, a ANA assume uma função de meta-regulação, devendo editar normas de referência e fiscalizar seu cumprimento pelos reguladores locais. Na prática, opera-se uma imbricação das estruturas administrativas do Governo Federal e de entes locais e regionais em prol da melhoria do serviço, o que demanda, por sua vez, um aprimoramento dos instrumentos federativos de cooperação.

 

Um dos reflexos dessa nova dinâmica interfederativa será visto nos sistemas de controle administrativo da ação estatal. Nesse cenário, é pertinente discutir o papel que o Tribunal de Contas da União (TCU) poderá assumir na fiscalização das ações a serem tomadas com base no Novo Marco.

 

O TCU é encarregado de exercer fiscalização de natureza financeira sobre as entidades federais, sob parâmetros de legalidade, legitimidade e economicidade. Agências reguladoras federais estão incluídas na jurisdição do TCU, mas seu controle deve ser exercido dentro de parâmetros e limites específicos, sob pena de se comprometer a autonomia regulatória das agências.

 

Via de regra, o TCU atua com base na distinção entre atividade-fim e atividade-meio. Atividades-meio exercidas por agências reguladoras (atos como contratações, concursos, etc) devem estar sujeitas ao mesmo tipo de controle exercido sobre os demais órgãos federais. Já quanto à atividade-fim, isto é, o próprio exercício da regulação, o tribunal deve preservar o espaço de deliberação técnica das agências que justificou sua criação.

 

Na prática, contudo, o que se tem visto é que o TCU tem se valido com alguma frequência de recomendações e determinações para interferir no mérito da atuação de agências reguladoras, extrapolando a natureza eminentemente contábil de sua fiscalização.

 

A peculiaridade do novo papel da ANA refere-se ao fato de que o objeto da sua atividade não é um serviço público federal, e que, portanto, não ensejaria fiscalização por parte do TCU. Mesmo quando haja prestação regionalizada, a lei deixa claro que as responsabilidades administrativa, civil e penal serão exclusivas dos titulares do serviço público, que, naturalmente, respondem aos seus respectivos órgãos de controle (tribunais de contas estaduais e municipais).

 

É verdade que o TCU já conduz há algum tempo ações de fiscalização sobre obras públicas relacionadas a atividades de saneamento, mas não propriamente sobre a regulação e prestação do serviço. Isso ocorre sobretudo quando são celebrados convênios entre prefeituras e entidades federais, o que atrai a competência do TCU por conta do emprego de recursos da União.

 

O Novo Marco conserva a relevância dos recursos federais na gestão dos serviços de saneamento. O art. 4º-B da lei, por exemplo, afirma que ANA deve divulgar uma lista das entidades reguladoras que adotam as normas de referência nacionais, de modo a viabilizar acesso a recursos públicos federais. Não obstante, o protagonismo dos entes locais e regionais também é preservado.

 

Diante desse cenário, algumas questões podem ser suscitadas: se a atuação finalística da ANA não envolve serviços públicos federais, mas municipais (ou regionais), qual será o papel que o TCU assumirá sob o Novo Marco? O descumprimento das normas de referência pelas entidades reguladoras locais ensejará algum tipo de fiscalização do tribunal? E como compatibilizar a atuação dos tribunais de contas estaduais e municipais com a fiscalização desse órgão federal?

 

É natural imaginar que a atuação do TCU há de ser subsidiária e deferente aos tribunais de contas locais, estes sim com jurisdição sobre os serviços municipais e regionais.

 

Os efeitos decorrentes da atuação descoordenada de órgãos de controle são conhecidos, notadamente no campo sancionador, e causam grave insegurança jurídica. Se é inegável reconhecer a importância dos órgãos de controle na fiscalização da ação estatal, também não se pode aderir cegamente à lógica de que “quanto mais controle, melhor”.

 

O Novo Marco Legal do Saneamento valoriza instrumentos de cooperação na gestão do serviço de saneamento, instituindo uma dinâmica complexa de interação entre União, estados, municípios e entidades regionais.

 

Os agentes reguladores precisam estar atentos a essa particularidade. Não obstante a relevante missão atribuída à ANA, a competência do TCU é naturalmente limitada pelo fato de não se estar lidando com um serviço público federal.

 

Assim, será preciso que o Tribunal adeque sua atuação, seja para garantir autonomia aos entes titulares do serviço e aos seus respectivos órgãos de controle, seja para assegurar à própria ANA o exercício de discricionariedade técnica na consecução de sua missão institucional.

 

*José Guilherme Berman é sócio do Barbosa Müssnich Aragão Advogados no Rio de Janeiro e André Macedo de Oliveira é sócio do Barbosa Müssnich Aragão Advogados em Brasília. 

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