A Justiça deveria ser cega

Advogado criminalista acredita que Poder Judiciário cada vez mais se coloca como guardião da opinião pública, mesmo que essa opinião contrarie o direito/ Nelson Jr./SCO/STF
Advogado criminalista acredita que Poder Judiciário cada vez mais se coloca como guardião da opinião pública, mesmo que essa opinião contrarie o direito/ Nelson Jr./SCO/STF
De acordo com especialista, se há um culpado pela soltura de um dos líderes do PCC essa culpa deve recair àquele que foi omisso e descumpriu a lei ao não justificar a necessidade da prisão preventiva.
Fecha de publicación: 13/10/2020
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Dizem que a justiça é cega, pois o juiz não pode ter os olhos no acusado quando decide, deve se atentar ao fato que julgar. Da mesma forma que o juiz não pode beneficiar o acusado devido a condições pessoais para lhe conceder benefícios, também não poderá retirar garantias ou direitos sob o pretexto de ser um malfeitor ou bandido. Isso significa que o direito deve ser aplicado da mesma forma para todos os cidadãos, independentemente de quem seja a pessoa do réu. 

A partir do Mensalão não se pode dizer que a justiça seja cega, ela cada vez mais vê aqueles que julga e, ao vê-los, afasta-se do direito. Foi com o Mensalão que a Themis brasileira começou a ouvir os urros da turba enlouquecida, que bradava por punições e perseguições aos poderosos. Ao ouvir a opinião pública ou opinião publicada, a Themis brasileira também deixou de lado o véu que a impedia de ver as diferenças dos acusados para aplicar o direito de forma igualitária, sem distinções. O problema é que quando olha para o acusado geralmente se cega para as leis. 

No momento que as partes se tornam mais importantes para a Justiça do que a aplicação do direito as injustiças irão acontecer. Se o juiz passa a se importar com quem é autor ou o réu, O acusado ou a vítima, os tribunais deixarão aplicar o direito para concederem benefícios ou retirarem direitos. 

É importante dizer que aquela turba que bradava contra a corrupção e pela punição dos poderosos não queria a punição dos poderosos, mas apenas daqueles que haviam investido no combate à miséria e proporcionaram independência à Polícia Federal e Ministério Público para que esses pudessem investigar e processar políticos e empresários envolvidos com corrupção.

A Justiça, ao ouvir essa turba, também foi seletiva, sendo impiedosa e autoritária com uns e leniente com outros. Não se julgava fatos, mas pessoas. Foi assim com o Mensalão, na Lava-Jato e é assim no dia a dia dos tribunais, quando a pecha de criminoso, assassino, estuprador ou corrupto é mais importante do que os fatos trazidos, as provas angariadas ou a lei a ser aplicada. 

Ao olhar para o acusado a Justiça perde a sua razão de ser, deixa de ser um Poder técnico, que se equilibra e, por vezes impede abusos dos Poderes Executivo e Legislativo, para ser apenas mais um instrumento político que comete arbítrios em nome de uma suposta opinião pública. Esquece-se que o Poder Judiciário, diferente dos demais que são poderes exercidos por políticos, é um poder técnico.

É técnico justamente porque deve ser um limitador aos possíveis excessos desejados por setores da sociedade, sua função não é implementar políticas públicas ou garantir a segurança, mas frear arbitrariedades. O Poder Executivo tem por função garantir direitos e limitar abusos que possam ser cometidos pelos demais poderes e, também, por setores econômicos. Sua vocação contra majoritária não pode ser esquecida, do contrário não haverá razão de ser. 

Alguns setores da mídia, ou por ignorarem a real função do Poder Judiciário ou por interesses políticos e mercadológicos, buscam influenciar cada vez mais os tribunais do país, impondo ao Judiciário o combate ao crime, a aplicação de política criminal e exigem que seja rigoroso com criminosos (muitos dos supostos criminosos sequer condenados).

Tem como um Judiciário ideal não aquele que garante direitos e garantias, mas que se alia ao Poder Executivo para perseguir e impedir que esses direitos e garantias sejam utilizados pelo acusado. O grande problema é que o Poder Judiciário cada vez mais dá atenção a essas vozes e se coloca como guardião da opinião pública, mesmo que essa opinião contrarie o direito. 

Quando olha para o acusado e não para os fatos e provas, tem-se início um direito penal do inimigo, no qual não importa mais se a pessoa realmente praticou o fato. O importante é que haja a punição, não importa se as leis serão respeitadas, se o direito será aplicado. 

O Ministro Marco Aurélio cometeu o erro de olhar para o direito, de exigir a aplicação da lei. Chegou às suas mãos um caso em que não justificava a necessidade da manutenção da prisão preventiva no prazo de 90 dias, determinado pela lei. Não cabia ao Ministro Marco Aurélio verificar quem era o acusado ou quais eram os crimes imputados. Cabia ao Marco Aurélio apenas corrigir a omissão criminosa de um membro do Judiciário.

Talvez o desembargador tenha olhado para o acusado e, por trata-lo como inimigo, acreditado que poderia deixar de seguir a lei, que o acusado não teria os direitos de um cidadão comum e, por isto, justificar a imposição de uma prisão preventiva seria algo supérfluo, sem necessidade, afinal não estamos falando de uma pessoa, mas de um inimigo. Marco Aurélio não olhou para o acusado, mas aplicou o direito. A prisão era claramente ilegal, e prisões ilegais devem ser revogadas. 

Infelizmente Marco Aurélio não deve ter ouvido o Ministro Fux que o STF deveria “se ajustar ao sentimento constitucional do povo”, ou seja, abre-se mão da vocação contra majoritária de proteção de minorias e de garantidor de direitos para garantir julgamentos que agradem setores da população. Com isso, pouco depois Fux, contrariando todas as normas e princípios jurídicos, revogou a decisão de Marco Aurélio. 

Obviamente sobraram críticas ao Marco Aurélio. Setores da imprensa se indignaram com a decisão de soltar um criminoso perigoso, mas não teceram qualquer crítica àquele que não justificou a necessidade da manutenção da prisão, o que tornou a prisão arbitrária e, por esse motivo, foi revogada. Se há um culpado pela soltura de um dos líderes do PCC essa culpa deve recair àquele que foi omisso e descumpriu a lei ao não justificar a necessidade da prisão preventiva. 

Como era de se esperar, alguns setores da imprensa trataram de atacar a lei, alegando que a necessidade de justificar uma prisão preventiva periodicamente seria um incentivo à corrupção.  

A imprensa, ao dar espaço privilegiado para pessoas que distorcem fatos, mina a democracia e, consequentemente, a própria liberdade de expressão e imprensa. Uma democracia não é apenas liberdade de expressão ou de imprensa como alguns jornalistas e veículos de mídia pensam. Democracia é respeito à lei e, nesse ponto o Poder Judiciário é fundamental, pois é ele a barreira contra o autoritarismo que pode vir do Poder Executivo e Legislativo. 

A imprensa deve cobrar o Poder Judiciário, assim como faz com os Poderes Executivo e Legislativo. Porém, ao distorcer fatos e manipular a opinião pública para que se indigne com a aplicação da lei e com o respeito aos direitos e garantias fundamentais, estará enfraquecendo a própria Democracia.

*Andre Lozano é advogado criminalista e professor de direito penal.

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