Diversidade nas urnas: um sopro de vitalidade para a democracia

Thammy Miranda (SP), Duda Salabert (MG) e Erika Hilton (SP) estão entre os 30 vereadores trans eleitos no país e ficaram entre os mais votados nas câmaras municipais de Belo Horizonte e São Paulo
Thammy Miranda (SP), Duda Salabert (MG) e Erika Hilton (SP) estão entre os 30 vereadores trans eleitos no país e ficaram entre os mais votados nas câmaras municipais de Belo Horizonte e São Paulo
O aumento de pessoas negras, mulheres e LGBTQIA+ entre os eleitos nas eleições de 2020, ainda que modesto, é um sopro de vitalidade em nossa combalida democracia.
Fecha de publicación: 24/11/2020

Nas eleições de 2020, 32% dos prefeitos eleitos se autodeclararam negros. Em 2016, eram apenas 29%. Houve também aumento, ainda que pequeno, na proporção de prefeitas eleitas no primeiro turno: de 11%,7, em 2016, passou a 12,1%, em 2020. No segundo turno, que ocorre apenas em cidades com mais de 200 mil eleitores, o incremento da participação da mulher foi mais expressivo: em 2016, apenas 6 mulheres (em contraste com 108 homens) passaram ao segundo turno; em 2020, 20 mulheres estão na disputa, em conjunto com 94 homens.

O número de vereadores trans, em 2020, triplicou em relação a 2016.

Embora ainda insuficiente para garantir igualdade efetiva, o resultado eleitoral indica uma tendência: o ímpeto do bolsonarismo, em sua dimensão mais nociva, parece ter recuado.

Quando Bolsonaro insistia, durante a campanha eleitoral, em “unir o Brasil”, referia-se ao seu propósito de abafar as diferenças. Já no governo, repetia: “Vamos fazer o Brasil para as maiorias; as minorias têm que se curvar às maiorias. As leis devem existir para defender as maiorias; as minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”.

Bolsonaro, em sua crítica recorrente à “ideologia de gênero” e ao “politicamente correto”, evoca um passado em que prevalecia a família patriarcal, por cujo resgate propunha. Não por outra razão, em campanha, afirmava pretender fazer “o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás”.

Na distopia bolsonarista, os empregados domésticos voltam para os quartinhos das áreas de serviço; os gays, para o “armário”; e os “vermelhos”, para o pau de arara. No Brasil idealizado por Bolsonaro, os fortes devem ser livres para dominar os fracos.

A nova direita, em geral, e o bolsonarismo, em particular, rejeitam o discurso “politicamente correto” e reivindicam o retorno a um passado em que a maioria podia manifestar livremente os seus preconceitos, ainda que isso implicasse ofender e ridicularizar minorias.

O bolsonarismo procura vitimizar os grupos dominantes, sustentando que a exigência do comportamento politicamente correto os oprime. Foi o que disse em seu discurso de posse, quando prometeu libertar o povo da “inversão de valores”. As minorias é que deveriam ter sua liberdade de expressão limitadas, para não afrontar os valores majoritários. Os gays, por exemplo, deveriam deixar de manifestar em público sua orientação sexual. Do contrário, chegaríamos a uma “ditadura gay”, por conta da influência sobre o comportamento das crianças.

Stefan Zweig, exilado no Brasil na década de 1930, publicou o livro “Brasil, o país do futuro”. O escritor sustentava que a vocação para a tolerância e o sincretismo habilitava o país como modelo de futuro ético para a humanidade.

Eleito o atual presidente, o jornalista Philipp Lichterbeck publicou artigo com o título inevitável: “Brasil, um país do passado”.

Bolsonaro é, provavelmente, o primeiro presidente brasileiro, pelo menos desde o fim da República Velha, cujo projeto é podar nossa rica variedade humana, ao invés de promovê-la; oprimir a diferença, ao invés de estimular sua força criadora.

A eleição de Bolsonaro não tem o significado de reafirmar a identidade nacional em face de influências estrangeiras impostas heteronomativamente. Significa o seu contrário: a negação de nosso projeto nacional, identificado com o propósito de erigir uma nação diversa, plural e democrática, melhor porque capaz de “incorporar em si mais humanidades”, como dizia Darcy Ribeiro.

A possibilidade de uma república democrática e inclusiva, em 2018, parecia se reduzir à condição de quimera de antigos patriotas e humanistas. Havia considerável probabilidade de que, hoje, já estivéssemos vivendo em um ambiente sufocante. O incremento da diversidade, nas eleições de 2020, ainda que modesto, é um sopro de vitalidade em nossa combalida democracia.

*Cláudio Pereira de Souza Neto é advogado e autor do livro “Democracia em Crise no Brasil” publicado pela editora Contracorrente.

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