Supremo precisa fazer uma autocrítica

Para manter a democracia, Supremo deve voltar a ser o guardião da Constituição/Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Para manter a democracia, Supremo deve voltar a ser o guardião da Constituição/Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Da mesma forma que se cobra mudança de postura de partidos e de políticos, também é preciso uma autoanálise do STF
Fecha de publicación: 17/02/2021

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O populismo de direita voltou a ganhar força no Brasil em 2016, quando alguns candidatos a prefeito se valeram de uma narrativa antipolítica para se elegerem.

Já em 2018 tivemos a eleição de Jair Bolsonaro e de inúmeros políticos populistas de direita. Eles se valeram do discurso de ódio, do ataque às instituições públicas como o Poder Judiciário e ao Congresso para se eleger. Conseguiram canalizar o sentimento de insatisfação de grande parte da população para alçar não apenas Presidência da República, mas também os governos de grandes estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas e Minas Gerais, além de eleger inúmeros deputados e senadores.

Os políticos populistas atuais serem grandes críticos do Poder Judiciário, atacando uma suposta leniência (que é facilmente desmentida se analisarmos as estatísticas prisionais) que os magistrados, em especial os integrantes do STF, atuam frente ao crime.

Apesar dos ataques, o populismo não teria crescido tanto sem o auxílio do Poder Judiciário. Em algumas oportunidades esse auxílio se deu de forma involuntária, por exemplo, quando determinou o afastamento ou a prisão de deputados e senadores, como Delcídio Amaral, Aécio Neves e Eduardo Cunha.

Já em outras oportunidades há uma clara tentativa de favorecimento e intromissão na política, como as atuações do ex-juiz Sérgio Moro, que atuou de forma ilegal em diversos momentos, como quando divulgou as ligações telefônicas do ex-presidente Lula.

Sendo os auxílios voluntários ou involuntários o que há de comum é que o Poder Judiciário favoreceu o crescimento do populismo e de movimentos autoritários devido ao sistemático desrespeito à lei e à Constituição. Desde o Mensalão não faltam exemplos de excessos cometidos por juízes, desembargadores e Ministros que, diante da pressão pública por acabar com a corrupção, deixavam de lado a lei para atender às vozes das ruas.

Esse desrespeito à lei por aqueles que deveriam fazê-la ser cumprida estimulou a polarização política que vivemos desde as eleições de 2018. Para parte da população a lei deveria ser ignorada para que fosse possível combater o crime, especialmente a corrupção. Na outra ponta via-se o descumprimento da lei como perseguição política e tentativa de influenciar nas eleições.

Ficou evidente que a forma como os magistrados atuaram foi essencial para o desfecho de diversos eventos políticos, os mais significativos são o impeachment de Dilma Roussef e a eleição de Jair Bolsonaro.

Cada vez fica mais cristalino que o Poder Judiciário atuou ilegalmente com os membros do governo do PT, o que foi escancarado com as mensagens trocadas entre os procuradores da Lava-Jato e o ex-juiz Sérgio Moro. Ocorre que, passadas as eleições, o Poder Judiciário, em especial o STF, mantém uma atuação um tanto quanto singular. Ao invés de buscarem a legalidade, preferem criar interpretações que impossíveis de serem admitidas em países democráticos.


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Nesta terça-feira (16), tivemos mais um exemplo de uma decisão judicial emanada de um ministro do STF que seria impensável se estivéssemos vivendo em um período de normalidade e com o Poder Judiciário cumprindo seu papel contramajoritário de aplicador da lei e da Constituição. O Ministro Alexandre de Moares determinou a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) por ele ter feito um vídeo que ofende os ministros do STF, acusa-os de vender decisões judiciais e propõe intervenção militar e a volta da ditadura militar.

As palavras proferidas pelo deputado são extremamente graves, mas caberia ao Congresso cassar o deputado por quebra de decoro parlamentar, não sendo admissível o afastamento do deputado pelo STF.

A prisão se deu por ter o deputado supostamente incorrido nos art. 18, 22 e 23 da Lei de Segurança Nacional (LSN). Vendo o vídeo, nota-se que o deputado foi extremamente desrespeitoso com os ministros do STF e que não tem qualquer apreço pela Democracia, mas a interpretação dada por Alexandre de Moares é muito extensiva, não abarcando os tipos penais lá descritos.

O princípio da taxatividade impõe que a descrição da conduta pela lei seja clara e se adeque à conduta. No caso do deputado, houve uma série de ofensas e acusações, mas não se pode dizer que houve incitação da subversão política, da animosidade entre as Forças Armadas e instituições ou propaganda relevante para alteração da ordem política.

Também não se pode classificar como grave ameaça a fala do deputado, de modo que a conduta de Daniel Silveira não se enquadra em nenhum dos crimes que o ministro Alexandre de Moares cita na decisão. Aparentemente, como não poderia determinar a prisão do deputado pelas injúrias, preferiu-se ampliar a incidência da lei de Segurança Nacional a fim de prender o deputado.

A fala do deputado pouco difere das diversas declarações de Jair Bolsonaro tanto antes quanto após ter sido eleito presidente, o que demonstra que, se o deputado está sendo preso por isso deveria haver um inquérito em andamento para apurar os mesmos crimes cometidos pelo Presidente da República, com a agravante que Bolsonaro é o chefe das forças armadas, portanto suas declarações são mais perigosas do que a de um deputado.

Deixo claro, porém, que apesar de acreditar que se trata de crime de responsabilidade, não acredito que apenas tais discursos configurem crime comum. Faço a comparação apenas para demonstrar o erro da decisão.

A lei de Segurança Nacional já foi fortemente criticada pois parcela considerável de juristas acreditam que não tenha sido recepcionada pela Constituição de 1988, por tratar de tipos penais excessivamente abertos, de modo que muitas condutas de caráter ideológico poderiam ser nela enquadradas, lembremos o ano de 2013 quando jovens foram presos com base nessa lei. O que foi feito agora pouco difere do ocorrido em 2013, pois amplia-se o campo de incidência da lei para justificar uma prisão que não seria possível uma interpretação extensiva.

Como se não bastasse, a inércia do julgador mais uma vez foi quebrada no inquérito das fake news, pois a determinação da prisão se dá de ofício, ou seja, sem que o Ministério Público ou a autoridade policial solicitem ao julgador a prisão.

O argumento que se utiliza nesse momento é que por ser crime permanente pode-se realizar a prisão em flagrante a qualquer momento, podendo, inclusive, ser determinada pelo juiz. Ocorre que o judiciário brasileiro não costuma agir de ofício quando verifica ilegalidades, haja vista a situação escandalosa dos presídios em que a dignidade dos presos é absolutamente ignorada e os falsos testemunhos de agentes públicos em juízo, até por isso surpreende que em plena terça de carnaval um ministro determine a prisão imediata de um deputado.

Nesse momento parece que o Poder Judiciário, por meio de seu órgão máximo, o STF, continua atuando da mesma forma insensata que agiu nos últimos anos. Da mesma forma que se cobra autocrítica e mudança de postura de partidos e de políticos, também devem ser cobrada uma autocrítica do STF, pois foi ele um dos grandes responsáveis pelo crescimento do autoritarismo, tendo em vista que se não fosse leniente com os abusos cometidos por juízes e desembargadores e tivesse aplicado a Constituição, é possível que não houvesse clima político para que essa extrema direita autoritária chegasse ao poder. Ao manter uma atuação que diverge da lei, o STF dá argumentos àqueles setores autoritários que desejam fechá-lo.

É o momento de abandonar o populismo judicial que imperou na última década para voltar a ser o guardião da Constituição. Devemos lembrar que não se combate o crime cometendo crimes, tampouco o autoritarismo com mais autoritarismo, do contrário as consequências para a Democracia brasileira podem ser desastrosas.

*André Lozano Andrade é advogado criminalista, professor de direito penal e processo penal e coordenador de direito penal e processo penal da Comissão de graduação, pós-graduação e pesquisa da OAB/SP


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