Qual a solução para diminuir a letalidade das polícias brasileiras?

Intenção das denúncias a organismos internacionais é debater a escalada autoritária, expor casos de violência institucional e conscientizar a sociedade /Rovena Rosa/Agência Brasil
Intenção das denúncias a organismos internacionais é debater a escalada autoritária, expor casos de violência institucional e conscientizar a sociedade /Rovena Rosa/Agência Brasil
Abusos da PRF se somam a centenas de casos das polícias militares e mostram que atual modelo de militarização das forças de segurança pode não ser a melhor forma de proteção dos cidadãos.
Fecha de publicación: 03/06/2022

As notícias dos abusos cometidos pela Polícia Rodoviária Federal em Sergipe, com a morte de Genivaldo de Jesus Santos e a operação na comunidade de Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, que terminou com a morte de 23 pessoas, reacendem um debate que preocupa entidades ligadas ao direitos humanos no país: a questão da letalidade das polícias brasileiras.

Nesta semana, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns fez um pedido à Organização das Nações Unidas (ONU) para condenar o aumento das responsabilidades da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Os policiais passaram a atuar em operações conjuntas fora das rodovias, mudança que começou a valer durante o governo Bolsonaro.


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A Comissão quer que organismos internacionais reforcem o compromisso com as obrigações em relação aos direitos humanos e o cumprimento de tratados internacionais. O documento entregue à ONU defende a necessidade de controle externo e a pressão sobre o governo brasileiro para frear as condutas consideradas abusivas em relação à atividade policial no país.

Ação da PRF em Sergipe que levou à morte de Genivaldo Santos

"Chama a atenção o envolvimento direto da PRF em operações altamente questionáveis, que têm resultado em morticínios descontrolados", diz o documento. No relatório, a comissão afirma que o atual governo estimula essas ações. "O apoio à atuação ilegal por parte de forças de segurança não fica apenas no âmbito do discurso. O principal projeto que o governo Bolsonaro apresentou ao Congresso Nacional na área de segurança pública previa a ampliação de excludentes de ilicitude para policiais que atuassem com 'escusável medo, surpresa ou violenta emoção'. O objetivo expresso dessa medida seria assegurar ampla impunidade a policiais que abusam de sua autoridade."

Para Gabriel Sampaio, advogado da Comissão, o debate sobre o papel das polícias brasileiras deveria estar mais focado na análise da estrutura dos órgãos de segurança pública, de controle social, atenção e respeito às normas internacionais de direitos humanos. "O momento dessa escalada autoritária tem dificultado em muito o debate tanto por políticas públicas de segurança como um debate mais estrutural sobre a institucionalidade, sobre o modelo mais adequado para essas instituições", afirma.

A Comissão, uma organização da sociedade civil composta por juristas, intelectuais, jornalistas, ativistas e voluntários na defesa dos direitos humanos tem levado a organismos internacionais casos de abusos. Mais do que uma ação efetiva, a intenção é debater a escalada autoritária, expor casos de violência institucional, conscientizar a sociedade e procurar meios de uma discussão mais profunda. 

"Sempre que há o abuso, há uma sociedade civil pujante no nosso país para questionar esses abusos, para apontar o caminho civilizatório, da construção do Estado de Direito e de proteger a sociedade do arbítrio e dos abusos. Então, por mais que estejamos diante de um momento difícil, de descumprimento de decisões judiciais, decisões internacionais de ausência de responsabilização por parte dos agentes públicos a sociedade civil tem cumprido seu papel", avalia o advogado.

Em entrevista, o presidente Bolsonaro defendeu a PRF e criticou a imprensa no caso relacionado à morte de Genivaldo de Jesus Santos. "Não podemos generalizar tudo que acontece no nosso Brasil. A PRF faz um trabalho excepcional para todos nós [...] A Justiça vai decidir esse caso. Tenho certeza que será feita a Justiça todos nós queremos isso aí. Sem exageros e sem pressão por parte da mídia que sempre tem lado, o lado da bandidagem."

"O presidente acaba manifestando o apoio a execuções sumárias e extrajudiciais. Esse tipo de mensagem é absolutamente afrontosa aos direitos humanos. Isso tem um impacto muito negativo para o país e para as demandas que nós temos de enfrentamento a esse tipo de atuação policial. São mensagens que certamente são um sinal trocado para a sociedade e para a comunidade internacional sobre o que deve ser a atuação dos agentes públicos", avalia Gabriel Sampaio. 

Priscila Villela, professora de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança (NETS), analisa que há um movimento no discurso do Bolsonaro de aceitar a violência das polícias, uma certa segurança de que essas forças não vão ser punidas. "Ele acaba por reforçar, chancelar esse tipo de prática. E junto a isso essas normas que têm ampliado a participação das polícias federais em operações que não têm nada a ver com as suas funções originais".

Em vídeo, a direção da Polícia Federal defendeu que os abusos cometidos pelos policiais são condutas isoladas e prometeu melhorar a forma de abordagem.

Desmilitarização das polícias e uso de câmeras

Os abusos da PRF se somam a centenas de casos das polícias militares que mostram, segundo os especialistas, que o atual modelo de militarização das forças de segurança, apesar de estar profundamente enraizado na cultura nacional como uma política de preservação do Estado e da segurança pública, pode não ser a melhor forma a ser usada em termos de proteção dos cidadãos.

O assunto é mais discutido em países de primeiro mundo. Alguns, principalmente europeus como a Bélgica, já adotaram o modelo faz mais de 30 anos. Por aqui, o tema já foi discutido no Congresso Nacional, ainda que de forma tímida. Há oito anos, o então senador Lindbergh Farias apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que determinava a desmilitarização policial. Mas o projeto acabou sendo arquivado.

Há quem defina a desmilitarização como eliminação da hierarquia e disciplina e redução do uso da força. Mas o que está em jogo nesta discussão?

Para os especialistas, o que passou a ser definido como militarização, pela literatura e no debate público, em grande medida significa um desvio das funções originais atribuídas tanto às instituições militares quanto às instituições policiais. Isso se manifesta pelo emprego recorrente de forças armadas em operações urbanas ou na transformação dos próprios métodos de treinamento, uso de armamentos e tipos de operações que as polícias têm conduzido.

Outra discussão que tem avançado no debate da letalidade das polícias foram as medidas implementadas por São Paulo, com a instalação de câmeras acopladas nos uniformes dos policiais militares. O chamado “grava tudo” diminuiu em 36% o número de mortes em possíveis confrontos no estado em 2021.

Em 18 batalhões da capital e interior a redução das mortes chegou a 85%: entre 1º de junho a 31 de dezembro de 2020 foram 110 mortes como resultado de ações policiais. No mesmo período do ano passado foram 17. No caminho da polícia paulista, o Rio de Janeiro também começou a dotar a medida. O estado é um dos que mais mata no país, especialmente em conflitos entre policiais e traficantes em regiões periféricas.

Priscila Villela defende que essa é uma política de sucesso e uma estratégia inclusive para reduzir os riscos para o trabalho dos agentes, já que o policial teria também como provar que estaria diante de uma situação de risco e de legítima defesa. "Só que no final das contas, essa redução nos indica que os policiais se envolviam em muitas situações de violência, que eles não tiveram coragem de se envolver perante as câmeras, ou seja, que antes não eram situações claramente de legítima defesa e de resistência e resistência armada". 

Gabriel Sampaio afirma que todas as formas de controle são importantes e precisam ser implementadas. "Isso é uma demanda do Estado Democrático de Direito. As câmeras dialogam com a demanda do nosso país, onde nós temos uma violência institucional extremamente marcada pelo racismo. Um país em que 75% das vítimas de mortes provocadas pelo Estado são pessoas negras precisa de medidas concretas e urgentes para enfrentar esse fenômeno. É preciso garantir essa forma de controle por meio de gravações e instalação de câmeras", diz.


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O especialista acredita que o uso da tecnologia só vai ser eficiente e efetivo se estiver integrado com um sistema e com um modelo de controle externo, operacional e administrativo sobre aquilo que acontece nas operações. 

Fato é que essa discussão amplia o debate e gera atenção pública, além de pressionar a própria Justiça a punir policiais em casos de abusos, e garante que o custo político dessas operações seja cada vez maior.

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