A accountability do Estado brasileiro

Ao cobrar algo sabidamente indevido, os entes públicos deveriam restituir o que receberam ou ajustar o valor da cobrança/Pixabay
Ao cobrar algo sabidamente indevido, os entes públicos deveriam restituir o que receberam ou ajustar o valor da cobrança/Pixabay
Termo pode ser explicado como responsabilidade com ética, obrigações e transparência.
Fecha de publicación: 08/03/2021

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O Poder Judiciário Brasileiro é um gigante que consome R$ 93,7 bilhões por ano e administra quase 80 milhões de processos, conforme dados do Anuário Justiça em números 2019 do Conselho Nacional de Justiça. Além disso, está nas primeiras posições quando comparado seu custo anual ao PIB do país, demandando 1,37% no Brasil, ante a taxas bastante inferiores nos EUA (0,14%) ou ainda na Argentina (0,13%).

 

Mas não é só isso. Nas primeiras posições da lista dos maiores litigantes encontramos o Estado Brasileiro, seja representado pela União, pelos Estados e pelos Municípios; o qual, inclusive, chegava a possuir a maioria dos processos em andamento.

 

Esse contencioso excessivo do Estado, em verdade esconde uma insistência recorrente de alguns entes federativos e órgãos públicos de não cumprir as normas legais e decisões judiciais. Ao invés de simplesmente ajustarem suas condutas, muitas vezes essas entidades, que deveriam ser exemplos no cumprimento das normas, ignoram decisões e alterações legislativas.


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Como exemplo, podemos citar o entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal de que o limite para fixação de multa punitiva é o valor do imposto suprimido, por valores superiores possuírem caráter confiscatório (RE 833.106/GO). Ao invés de corrigir imediatamente e “de ofício” as situações que se afastam da regra ali estipulada, boa parte dos entes públicos insistem nas cobranças abusivas, seja em demandas judiciais, seja em processos administrativos, gerando milhares de recursos e defesas que somente tornam o Judiciário mais caro e ineficiente.

 

Esse cenário, em verdade, cria um círculo vicioso no qual os feitos executivos fiscais acabam demandando, em média, 9 anos e 1 mês para terminarem.

 

A cobrança, por si só, já deve ser considerada um absurdo. Porém, ao invés de coibir referida conduta, o Poder Judiciário tem mitigado os efeitos das decisões contrárias em face dos entes públicos.

 

Isso porque o Código de Processo Civil de 2015 foi expresso em definir o padrão para fixação de honorários nos casos em que a Fazenda Pública for parte, seja no polo ativo ou passivo, trazendo percentuais de sucumbência inferiores aos aplicados aos demais litigantes (art. 85, § 3º). Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, corte a quem incumbe ser o guardião das normas legais do país, quando o valor da condenação da Fazenda Pública é expressivo (conceito que pode ser bastante elástico a depender de quem interpreta), vem desconsiderando a disposição expressa do Código e convalidando aplicação de valor com base em julgamento equitativo, utilizando para tanto um dispositivo específico para valor “inestimável ou irrisório” (art. 85, § 8º).

 

A situação é trágica. Os filhos (entes públicos) insistem em não cumprir as normas legais e decisões judiciais e os pais (Poder Judiciário), ao invés de reprimir referida conduta com base nos preceitos legais, encontram uma solução para “suavizar” a pena daqueles quando descobertos.

 

Ora, uma vez que o valor da condenação é um percentual sobre a condenação ou proveito econômico (redução da ilegalidade), somente sofrerá dura imputação caso a ilegalidade seja igualmente em montante expressivo.


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Os entes públicos brasileiros não temeriam referida imputação, nem tentariam mitigá-la se praticassem a tão clamada accountability. O termo, que vem da língua inglesa, pode ser explicado como responsabilidade com a ética, as obrigações e a transparência. Ao cobrar algo sabidamente indevido, os entes públicos deveriam, sem qualquer manifestação e/ou recurso da parte, restituir o que eventualmente receberam ou mesmo ajustar o valor da cobrança.

 

Mas não, a postura é de insistir na cobrança, contestar e apresentar todos recursos possíveis para tentar mantê-la, bem como reduzir os honorários advocatícios em caso de derrota.

 

Já passou da hora do poder público agir com responsabilidade e transparência na relação com os contribuintes. Ao Judiciário, no papel de guardião da Constituição, da lei e da ordem, precisa demonstrar se será conveniente com essa conduta ou a reprimirá na forma da lei. É que veremos nos próximos meses. Se a Justiça se acovardar, poderá amargar um veneno por ela mesmo criado.

 

*Rafael Peroto é sócio do escritório Oliveira e Olivi Advogados e Associados.

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