Para receber nossa newsletter diária, inscreva-se aqui!
A Lei nº 13.964/2019 (Lei Anticrime) está em vigor desde 23 de janeiro de 2020 e trouxe modificações importantes nas legislações penal e processual brasileiras. Entre as principais mudanças, destacamos a inclusão do acordo de não persecução penal (ANPP) no artigo 28-A no Código de Processo Penal (CPP).
O ANPP é celebrado entre Ministério Público, de um lado, e o investigado e seu defensor, de outro, perante a Justiça Criminal. Trata-se de mais uma possibilidade de acordo estabelecida na legislação brasileira, reforçando a quebra do paradigma de obrigatoriedade na persecução penal trazida em 1995 com os institutos da transação penal e suspensão condicional do processo, previstos na Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais).
Contudo, há divergência quanto à natureza jurídica do ANPP: se, uma vez preenchidos todos os pressupostos e requisitos legais, deve ser considerado um direito público subjetivo do investigado, o que certamente será sustentado pela defesa; ou se deve ser interpretado como uma prerrogativa do Ministério Público, o que já vem sendo sustentado em enunciados elaborados pela Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ) e Corregedoria-Geral do Ministério Público (CGMP) do Estado de São Paulo e orientações divulgadas pelo Ministério Público Federal (MPF). Discussões idênticas também foram enfrentadas para se definir a natureza jurídica da transação penal e da suspensão condicional do processo.
A celebração do ANPP pressupõe que não seja caso de arquivamento das investigações criminais, ou, visto de outra forma, devem haver indícios de materialidade e de autoria do crime; e o investigado confesse formal e circunstancialmente, por escrito, a prática da infração penal.
A redação do artigo 28-A utiliza a expressão "investigado", e não "acusado", "denunciado" ou "réu", o que permite assumir que tal acordo poderá ser discutido antes do início da ação penal, até mesmo por se tratar de inovação benéfica da lei (conforme entendimento que vem sendo adotado por representantes do Ministério Público dos estados de Santa Catarina e Pernambuco, por exemplo).
Recentemente, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF formalizou o entendimento de que o ANPP seria aplicável aos processos criminais em andamento, antes do trânsito em julgado, nos termos do Enunciado nº 98.
A Lei Anticrime também elenca os seguintes requisitos para a celebração da ANPP:
- Requisitos objetivos: a infração penal deve ter sido praticada sem violência ou grave ameaça; a pena mínima privativa de liberdade cominada ao crime deverá ser inferior a 4 anos, devendo ser considerada no cálculo eventual causa de diminuição; não cabimento de transação penal, que deve ser oferecida preferencialmente; não celebração de transação penal, suspensão condicional do processo ou ANPP nos 5 anos anteriores à prática da infração; e não se tratar de caso de violência doméstica ou familiar contra a mulher.
- Requisitos subjetivos: não reincidência ou indicativo de conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, salvo se insignificante a infração penal pretérita; e necessidade e suficiência para reprovação e prevenção da infração penal.
Há duas outras considerações importantes que já têm gerado reflexões no meio jurídico. A primeira é que a Lei Anticrime não estabelece, em relação ao requisito de não ter havido celebração de transação penal, suspensão do processo ou ANPP, qual deverá ser o termo inicial da contagem do prazo de 5 anos (data da celebração do acordo anterior ou de sua homologação; data do cumprimento das condições acordadas ou de sua certificação nos autos; data da decisão judicial de extinção da punibilidade nos fatos ou de seu trânsito em julgado), o que poderá causar divergências de ordem prática.
A segunda consideração é que a Lei Anticrime estabelece, em relação ao requisito de não reincidência ou conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceções em casos em que sejam "insignificantes as infrações penais pretéritas" (artigo 28-A, § 2º, inciso II, do CPP), o que poderá ser interpretado como reconhecimento da existência da figura do princípio da insignificância no próprio ordenamento jurídico, apesar de não haver previsão legal expressa a respeito do que seria ou não insignificante.
O ANPP poderá conter determinadas condições, alternativas ou cumulativas, que poderão ser oferecidas pelo Ministério Público e aceitas ou cumpridas pelo investigado. São elas: reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, caso seja possível; renúncia a bens e direitos indicados como instrumento, produto ou proveito do crime; prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima prevista à infração penal, diminuída de 1/3 a 2/3; prestação pecuniária a entidade pública que tenha como função, preferencialmente, proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos lesados pela infração penal; e outras condições proporcionais e compatíveis com a infração penal atribuída ao investigado.
Após o ajuste das condições e a formalização do acordo entre Ministério Público, investigado e seu defensor, o ANPP deverá ser encaminhado à apreciação do Juízo Criminal, para homologação ou não.
Em caso de homologação do acordo, o Juízo Criminal deverá encaminhar o ANPP ao Juízo da Vara das Execuções Penais para acompanhamento do cumprimento das condições pelo investigado. A homologação do ANPP, aliás, é uma nova causa suspensiva do prazo prescricional trazida pela Lei Anticrime, nos termos do novo inciso IV do artigo 116 do Código Penal.
Uma vez cumpridas todas as condições, o Juízo das Execuções Penais deverá declarar a extinção da punibilidade nos fatos investigados. Por outro lado, descumpridas as condições, o Juízo das Execuções Penais deverá rescindir o ANPP (o que revoga a suspensão da prescrição) e o Ministério Público poderá determinar o prosseguimento das investigações criminais, com a realização de diligências para fundamentar denúncia, ou oferecer denúncia contra o investigado, utilizando, inclusive, o descumprimento do acordo como justificativa para não oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo.
No caso de descumprimento das condições pelo investigado, há controvérsia quanto à possibilidade ou não de utilização de sua confissão pelo Ministério Público como elemento para oferecimento de denúncia ou mesmo de indício de prova no curso da instrução processual perante o Juízo Criminal.
Os enunciados da PGJ e CGMP do estado de São Paulo pretendem consolidar a orientação de que sim, mas há quem defenda que não, pois o Juízo Criminal deverá formar sua convicção em provas produzidas em contraditório judicial e não poderá fundamentar sua decisão exclusivamente em elementos colhidos durante investigações (artigo 155 do CPP); e por analogia à colaboração premiada não celebrada por iniciativa das autoridades públicas (artigo 3º-B, § 6º, da Lei nº 12.850/2013, incluído pela Lei Anticrime), a confissão não poderá ser utilizada contra o investigado.
Em caso de não homologação do acordo (e.g. por ausência de voluntariedade do investigado; por inobservância aos pressupostos e requisitos legais; por inadequação, insuficiência ou abusividade das condições), o Juízo Criminal deverá devolver os autos ao Ministério Público, com a concordância do investigado e seu defensor, para reformulação do ANPP.
Nesse caso, o Ministério Público poderá oferecer nova proposta com as condições consideradas irregulares pelo Juízo Criminal devidamente readequadas; determinar o prosseguimento das investigações criminais ou oferecer denúncia contra o investigado; ou interpor recurso em sentido estrito com fundamento no novo inciso XXV do artigo 581 do CPP.
A despeito de aspectos controvertidos que deverão ser objeto de debates (e.g. momento de sua celebração; natureza jurídica; questões procedimentais), o ANPP pode ser visto como mais uma forma de resolução de conflitos criminais no Brasil, ou seja, como mais um instrumento de pacificação social que poderá ser utilizado por acusação (Ministério Público) e defesa (investigado e defensor), dependendo das características do caso concreto.
Trata-se de medida de política criminal que pode ser conveniente aos investigados que desejam encerrar acusações e/ou evitar condenações de maneira mais ágil e transparente. Certamente, é sempre necessário que o investigado esteja devidamente assistido durante todas as etapas das tratativas para celebração do ANPP, para que possa avaliar com cautela seus termos de forma livre e consciente, notadamente no que se refere à possibilidade de efetivamente cumprir com seus requisitos exigidos e ao entendimento adequado acerca de sua natureza e consequências legais.
*Mário Panseri Ferreira é sócio, Lourival Lofrano Junior é associado sênior e Luciano Yuji Ogassawara é advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados.
Add new comment