A adequação de documentos de pessoas não binárias no Brasil

19 de maio é o Dia Internacional do Orgulho Agênero, uma identidade de gênero de pessoas que não se identificam como homens nem como mulheres/Unsplash
19 de maio é o Dia Internacional do Orgulho Agênero, uma identidade de gênero de pessoas que não se identificam como homens nem como mulheres/Unsplash
A busca pelo reconhecimento da identidade das pessoas agênero deve ser um esforço coletivo.
Fecha de publicación: 18/05/2021

O conceito de gênero pode ser entendido como comportamentos e características socialmente atribuídos aos seres humanos com base nos seus caracteres sexuais. Assim, as pessoas que nascem como fêmea têm se designado com o gênero feminino, ou seja, passam a ser associadas a uma série de condutas consideradas femininas. O mesmo ocorre com as pessoas que nascem como macho, que passam a ser compelidas a desempenhar papéis masculinos. Este entendimento binário se aplica até aos seres humanos que nascem intersexo e, historicamente, têm seus corpos alterados para atender ao padrão binário de gênero.

 

Na contramão do binarismo de gênero, existem as pessoas não binárias – seres humanos que não se identificam apenas como homens ou mulheres, podendo identificar-se com ambos os rótulos; ora um, ora outro; ou nenhum dos dois. "Não binárie" é um termo guarda-chuva que abriga todas as identidades de gênero fora dos rótulos de homem e mulher.


Leia também: Transgêneros e as dificuldades na retificação do nome


Este 19 de maio é o Dia Internacional do Orgulho Agênero, uma identidade de gênero de pessoas que não se identificam como homens nem como mulheres. O rótulo "agênero" traduz a noção de um ser humano que não deve ter nenhum comportamento ou característica atribuído a si com base na sua composição física. São pessoas que podem ou não se identificar com os rótulos "transgênero" e "não binárie" e que têm demandas específicas enquanto seres humanos.

 

Atualmente, uma das demandas mais urgentes da comunidade agênero e que ecoa também em toda a população não binária é a necessidade por documentos que sejam condizentes com a sua identidade de gênero.

 

Em 2018, após o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu às pessoas transgênero binárias o direito de adequarem os seus documentos para que condigam com suas identidades de gênero sem a necessidade de realização de procedimentos cirúrgicos. Contudo, a decisão se omitiu sobre as pessoas não binárias ou agênero.

 

Atualmente, um procedimento disciplinado pelo Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dita a forma como os cartórios brasileiros devem obedecer ao entendimento fixado na ADI 4.275. Como resultado, em muitos municípios e capitais, os cartórios começaram a realizar a readequação de documentos de pessoas transgênero binárias. As pessoas que desejam a retificação também passaram a contar com o auxílio da Defensoria Pública, que, em muitos locais, ajuda durante todo o processo.

 

Mas, a perspectiva para pessoas não binárias, agênero e até mesmo intersexo – isto é, para todas as pessoas que não se sentem confortáveis com "sexo masculino" ou "sexo feminino" em seus documentos – é muito mais incerta. Sem a guarida do STF e do CNJ, as pessoas que tentam solicitar a alteração dos documentos para "sexo não especificado" ou "não identificado" direto nos cartórios, em geral, têm os seus pedidos negados. Faz-se necessária a atuação da Defensoria Pública ou a contratação de advogado/a/e para que o ser humano não binárie/agênero/intersexo ajuíze uma ação de adequação de registro civil.

 

Recentemente, foram noticiadas duas decisões de casos como esse, em que pessoas agênero buscavam seu direito de ter os documentos com designações fora do binarismo de gênero. O primeiro caso, sentenciado no fim de 2020, foi julgado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Nele, a parte teve garantido o direito de ter, em seus documentos, a designação "sexo não especificado".

 

No outro caso, mais recente, de 2021, uma juíza do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina elaborou uma robusta e didática sentença com ponderações sobre direito e identidade de gênero não binária e deu efeito jurídico para a escolha da pessoa requerente de se identificar e declarar como pessoa de gênero neutro, bem como determinou a retirada de anotações do nome e sexo anteriores nos documentos de registro e a averbação de seu registro civil com o nome desejado e os termos “não identificação” no campo “sexo”.

 

Os dois precedentes, embora favoráveis, não garantem direitos. Por isso, para que as inúmeras pessoas que ajuizarão ações de readequação de registro civil tenham seus direitos atingidos, é necessária a difusão de informações sobre as melhores práticas no ajuizamento destas ações. Afinal, as pessoas fora do binarismo de gênero constituem uma parcela da população brasileira que está sem resguardo, seja pela via legislativa ou por meio de decisões do Poder Judiciário.

 

Como o direito de pessoas não binárias depende, por ora, do Judiciário, a multiplicação das decisões de primeiro grau pelo país pode, eventualmente, culminar em decisão do STF ou Resolução do CNJ que estenda o direito de alterar os documentos diretamente no cartório às pessoas fora do binarismo também.


Veja também: O papel do judiciário na garantia dos direitos da população LGBT+


Para tanto, elencamos as boas práticas para a adequação de documentos por pessoas não binárias ou agênero:

 

  • Tente, primeiro, pedir a adequação no cartório e guarde prova da negativa; após a negativa, para ajuizar a ação de adequação de registro civil, procure a Defensoria Pública da sua região ou advogado/a/e de confiança;

 

  • Reúna o máximo possível de provas, como fotos, testemunhos escritos de pessoas próximas, declarações em redes sociais, manifestações públicas da identidade de gênero, laudos médicos e psicológicos etc., para formar o convencimento do juízo;

 

  • Certifique-se de que a argumentação da petição inicial contenha os seguintes pedidos, além do pedido principal de adequação de documentos: sigilo, para garantir confidencialidade da pessoa e a omissão do nome de registro que consta no cadastro do processo, além da retirada de anotações do nome e sexo anteriores nos documentos de registro, bem como omissão da alteração judicial;

 

  • Mantenha atenção às movimentações processuais, intimações e possíveis diligências necessárias, para garantir que o andamento do processo seja o mais célere;

 

  • Prepare-se para eventuais procedimentos desconfortáveis, como estudo psicológico a ser feito por profissional de indicação do juízo.

 

A busca pelo reconhecimento da identidade de pessoas não binárias ou agênero deve ser um esforço coletivo, de toda sociedade civil, para o engajamento e auxílio nesse caminho ainda tortuoso que é o da adequação de registro civil para essa população no Brasil.

 

*Luiz Felipe Ferraz é sócio, Mikkel Mergener e Davi Oliveira Sampaio são profissionais do escritório Mattos Filho.

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