A advocacia no combate ao racismo

A chance de ocupar espaços de prestígio no Direito é predominantemente restrita a pessoas brancas/Pixabay
A chance de ocupar espaços de prestígio no Direito é predominantemente restrita a pessoas brancas/Pixabay
A história da justiça no Brasil não será completa se não houver inclusão.
Fecha de publicación: 01/12/2021

Desde que adentramos as universidades de Direito, aprendemos que este se trata de uma ciência do dever ser, por prescrever as condutas adequadas da sociedade, a fim de controlá-la formalmente. Contudo, ao analisarmos o Direito brasileiro no que diz respeito ao combate ao racismo, podemos nos atrever a modificar o tempo verbal e tratá-lo por ciência do deveria ser. Deveria ser mais célere. Deveria ser mais humano. Deveria ser mais respeitado.

Isto porque, ao se alocar confortavelmente no último vagão do comboio das transformações sociais, o Direito, quando se trata de leis antirracistas ao longo de 300 anos passados desde a abolição da escravização, foi pródigo em gerar leis suprimindo direitos da população negra e ainda hoje precisa elaborar leis que facilitem o papel da advocacia para combater os reflexos do longo período escravocrata que vivemos.


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Sabemos que a advocacia exerce a função primordial de salvaguardar o Direito, proteger os interesses sociais e minimizar as injustiças, a fim de garantir o pleno funcionamento do Estado Democrático de Direito e do nosso sistema de justiça. Ocorre que, apesar de vivermos em um país predominantemente negro, o exercício da advocacia se dá, ainda hoje, em um ambiente majoritariamente branco.

A estética branca prevalente induz o profissional negro a buscar se enquadrar nos padrões eurocêntricos, sofrendo dessa forma um “embranquecimento”, que pode levá-lo a se afastar de certos espaços, pela certeza do não pertencimento. Nesse contexto, vale fazer o questionamento: é possível existir justiça sem o protagonismo negro na advocacia? De quantos advogados precisamos para fazer justiça?

O abismo entre as populações negra e branca no Brasil é latente, e não seria diferente nas grandes bancas de advocacia. Em 2019, o CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial e a Fundação Getúlio Vargas, ouviu 3.624 pessoas de nove dos maiores escritórios de São Paulo. A pesquisa mostrou que os negros representavam 1% dos advogados por eles contratados.

A tão sonhada oferta de oportunidades promissoras na advocacia ainda encontra entraves raciais, e a chance de ocupar espaços de prestígio no Direito é predominantemente restrita a pessoas brancas. Fatores como a menor presença de negros em universidades renomadas ou até mesmo a falta de um curso de inglês se somam à cor de pele para excluir esse grupo das chamadas oportunidades de ouro.

Por outro lado, apesar de, atualmente, os louros da advocacia estarem majoritariamente destinados a uma única parcela da sociedade, se o Direito já serviu para propiciar a exclusão, foi também o Direito um o maior dos aliados na luta contra o racismo e os reflexos da escravização que têm durado mais que os 300 anos pós-abolição no Brasil.

Figuras históricas como Esperança Garcia (1751 - ?), considerada pela OAB-PI a primeira advogada do Piauí, e Luiz Gama (1830 – 1882), que com auxílio do Direito conseguiu libertar centenas de escravizados e é popularmente conhecido como um dos maiores abolicionistas do Brasil, são exemplos de resistência e do exercício da advocacia por negros como ferramenta de proteção e garantia de direitos, em uma época na qual o peso da desigualdade racial era ainda mais brutal do que hoje.

Como operadores do Direito, no contexto atual, e de modo geral, somos parte integrante do sistema jurídico, não só como sujeitos passivos, mas como instrumentos capazes de expressar inquietude, e trazer mudança e desenvolvimento ao setor, uma vez que somos porta-vozes das pessoas que representamos e que anseiam por justiça e por uma resposta aos seus direitos transgredidos.

É notório que a advocacia deve combater o racismo institucionalizado, tanto no Judiciário como na sociedade de modo geral. Isso pode ser feito de maneira direta, com propostas de ações e demandas que visem a esse enfrentamento, ou pelo uso de teses e fundamentações de juristas negros e antirracistas em ações que não necessariamente tenham como propósito o combate ao racismo, mas cujos conceitos construídos por tais juristas sejam utilizados ao menos na mesma proporção em que os de juristas brancos.

Há, também, indícios de que, à exceção de profissionais engajados na luta antirracista, muitos profissionais do direito não possuem domínio sobre a legislação antidiscriminação, considerando-a periférica, e as delegacias policiais frequentemente não lidam com episódios de racismo de maneira séria ou dão informações inadequadas sobre os procedimentos legais (HERNANDEZ, 2017)

Segundo o professor Adilson José Moreira, em seu livro “O que é discriminação”, o sistema jurídico brasileiro e grande parte dos doutrinadores só reconhecem a existência de uma discriminação direta, uma vez que a interpretação da norma jurídica realizada por esses juristas está intrinsecamente ligada ao entendimento de que atos discriminatórios ofendem o princípio da isonomia formal. Por esse mandamento constitucional centrado na noção de justiça simétrica, para se configurar um ato discriminatório rechaçado pela Justiça, é preciso que existam elementos de intencionalidade e arbitrariedade.

É observado que pequena porcentagem dos casos são levados às instâncias superiores e as ocorrências são muitas vezes rechaçadas por agentes policiais (HERNANDEZ, 2017). Em entrevista à Tanya Katerí Hernandez, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, apontou que “o mito da democracia racial impede que pessoas levem casos ao judiciário. As poucas pessoas que recorrem ao Ministério Público encontram agentes prontos para concluir que os cidadãos não estão apresentando um caso válido”

Apesar disso, a justiça avança no reconhecimento do racismo e na punição da discriminação direta. Em julgado recente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a injúria racial como espécie do gênero racismo, no HC 154.248 no caso em que uma frentista negra no Distrito Federal (DF) foi chamada de “negrinha nojenta ignorante e atrevida”. Dessa maneira, o crime passa a ser imprescritível e inafiançável. Além disso, está em trâmite a ADI 6987 sobre a mesma questão, e o resultado da ação será de efeito erga omnes, ou seja, poderá ser aplicado contra todos.

Outra situação em que observamos o reconhecimento do racismo e a necessidade de combatê-lo dando voz a quem sabe identificá-lo é a inclusão de entidades do movimento negro como amicus curiae para participar do julgamento de racismo e injúria racial.não é cabível

Para que se consiga impedir a prática de ações antidiscriminatórias e para que a justiça puna e impeça essas práticas, é necessário, porém, que a mesma justiça entenda que existe mais de um tipo de discriminação. Além da direta, há a discriminação indireta, intergeracional, institucional, estrutural, interseccional e organizacional.

Ao entender e conseguir identificar os tipos de discriminação existentes, a advocacia conseguirá pautar suas teses e pedidos de maneira fundamentada e, assim, instigar o sistema jurídico para que também entenda e aplique tais fundamentações em suas decisões. Essa é uma das formas como a advocacia pode contribuir no combate ao racismo e na discriminação racial e de outros grupos sociais tão marginalizados pela sociedade.

Também como operadores do Direito, podemos atuar na articulação e representação de grupos a fim de combater esse sistema que exclui tantos brasileiros. A título de exemplo, podemos citar as comissões de igualdade racial da maioria das seccionais da OAB, a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, os coletivos negros existentes nos cursos de graduação em ciências jurídicas, entre tantos outros grupos e entidades que se unem para promover uma sociedade mais igualitária em termos formais e materiais.

Articular, influenciar e agir de diversas maneiras e em diversos espaços públicos e não públicos de poder político, econômico, cultural e social é o que torna a advocacia fator importantíssimo para que a mudança aconteça.

A história da justiça no Brasil não será completa se não houver inclusão. Para que o pouco, mas significativo, avanço se concretizasse, foram necessários diversos movimentos sociais liderados tanto pelos anônimos quanto pelos primeiros advogados negros, Esperança Garcia e Luiz Gama.


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Estes heróis devem ser honrados em seus ideais e se, a seu modo, combateram o bom combate se utilizando do pouco que tinham à mão, não cabe a nós nos deixarmos enfraquecer diante dos grilhões modernos, que podemos suplantar com os instrumentos dos quais dispomos.

Significa dizer que instrumentos como cotas raciais nos Conselhos Estaduais e Federal da OAB, ampliação do debate da advocacia antirracistas e cotas raciais nas universidades são importantes instrumentos de transformação social e de superação do racismo dentro do mundo do Direito. Se o movimento de transformação for integrado por um contingente expressivo, sua força obviamente será inquestionável. Isso significa que, para se fazer justiça, é necessário haver não só advogados no sentido profissional da palavra, mas também no contexto dos movimentos sociais, no original latino, ad.vocare (junto de = interceder em favor de), ou seja, precisamos de tantos advogados quantos bastem para erradicar o racismo, uma causa a ser abraçada por todos.

*Camila Galvão, Ana Carolina Lourenço, Júlio Nunes Porfírio, Maria Inácia Brito, Marcius Filipe Goncalves, Sara Daniela Patriarcha e Thiago Percides Pereira são especialistas do Machado Meyer Advogados.

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