Briga com a China entra na CPI da Covid

Qual o papel da diplomacia brasileira? O de destruir pontes ao invés de estreitar laços com outras nações?/Fotos Públicas
Qual o papel da diplomacia brasileira? O de destruir pontes ao invés de estreitar laços com outras nações?/Fotos Públicas
Atrito com nosso principal parceiro comercial só mostra o despreparo do atual governo.
Fecha de publicación: 20/05/2021

O ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, prestou depoimento no último dia 18 e negou veementemente atritos com a China durante seu mandato. Ele negou que o Brasil tenha tido uma relação conturbada com o gigante asiático, que é um dos principais produtores de remédios e insumos médicos do mundo, incluindo os utilizados para produzir vacinas e matéria prima contra o coronavírus no Brasil. Araújo responde à CPI da Covid, que investiga ações e omissões do governo na pandemia. 


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Não precisa ser um expert em economia ou cenário político para constatar se tratar de uma desfaçatez afirmar categoricamente que seu posicionamento durante a pandemia e seus comentários sobre o “comunavirus” não afetaram as relações diplomáticas com a China e nem o atraso nas entregas. Como consegue afirmar tão impavidamente, mesmo tendo um comportamento para lá de duvidoso para um chanceler da República?

Araújo disse que não atrapalhou as negociações com a China e disse que o Itamaraty cumpria orientações do Ministério da Saúde. Pode-se gostar ou não da China. Pouco importa. Mas dois pontos merecem atenção histórica e um pouco de estudo por parte daqueles que levam o nome do Brasil ao exterior:

1. Sem entrar no mérito de como surgiu o vírus (não sou infectologista), apesar de a OMS dizer que não se trata de uma criação de laboratório, não gosto de me meter em assuntos que não consigo mostrar, estudar ou os dois. Entretanto, chamar a China de comunista, mesmo que sublimadamente, dizendo que o país espalhou o “comunavirus” para expandir o comunismo no mundo, acaba nos envergonhando sobre conhecimentos de história, que qualquer aluno do ensino médio contestaria. 

Mas como assim, lacram os preguiçosos intelectuais e aqueles que já compraram à vista, uma narrativa sobre o modelo econômico chinês nas mídias sociais? Sim. Quem controla o gigante asiático é o Partido Comunista Chinês (PCChinês), ditatorial e que desrespeita os direitos humanos dos Uigurs, e de outras minorias étnicas e reprime qualquer manifestação pró democracia, vide Hong Kong.

Mas não podemos, em respeito à nossa retidão à fatos históricos e correntes, denominar o modelo econômico da China, comunista. A confusão, para não dizer a falta de pesquisa ou estudo básico, começa com o terrível massacre da Praça da Paz Celestial ocorrido em 04 de junho de 1989. Naquela época o então líder reformista, pós Mao Zedong, Deng Xiaoping, propunha incentivar a meritocracia e retirar paulatinamente as quotas de produção obrigatórias existentes em todo modelo de produção comunista.

Ocorre que uma economia que ainda misturava características de produção semelhante ao comunismo e ao mesmo tempo privilegiava a meritocracia, ajudou a nascer uma elite corrupta buscando se aproveitar de seu poderio como órgão planejador, dos incipientes capitalistas empreendedores, como testemunhado pela ascensão das Townships Villages Enterprises (TVEs): empresas em sua maioria privadas e localizadas na zona rural.

Com a descentralização fiscal, a inflação crescente advinda de emissões monetárias pelo PBoC (Banco Central Chinês - People's Bank of China) para cobrir rombos orçamentários das províncias e a reinante corrupção, inicialmente os estudantes se reuniram na praça da Paz Celestial em Maio de 1989, mostrando seu descontentamento com as imperfeições advindas de um modelo econômico, que reunia características comunistas e capitalistas, e que acabou desembocando em pedidos de maiores liberdades políticas.

Deng Xiaoping em conjunto com o premiê Li Peng, optaram por reprimir a manifestação, o que após algumas semanas já atingia proporções inimagináveis, para um governo que buscava controlar sua população (ditadura) com mãos de ferro.

Após o massacre, entretanto, a China desapareceu para o mundo. Primeiro, porque os antigos Maoístas buscavam novamente seu retorno ao poder, alegando que o único futuro para o Império do Meio (Zhōngguó) seria o Stalinismo, semelhante ao Maoismo, mas diferente do Leninismo e do Marxismo (cabe perguntar essas diferenças aos experts do twitter!).

Deng Xiaoping sabia que essa alternativa seria um retorno ao período das trevas, mas pouco podia fazer, pois havia sido colocado em uma situação de completo ostracismo político após o massacre de junho de 1989.

Eis que em 1991, a URSS sucumbe com seus próprios defeitos congênitos. Nesse momento, Deng percebeu que se não atuasse prontamente, a enorme quantidade de recursos em busca de investimentos acabaria sendo canalizada para as antigas repúblicas soviéticas, agora independentes.

Ciente de seu papel na história do país, Deng costurou um grande compromisso com o PCChinês e o Conselho de Estado, prometendo obediência e completo domínio sobre a esfera política (ditadura). Mas como denominar uma economia onde a meritocracia voltaria a reinar e o cenário político seria dominado por um Partido Comunista? Eis que Deng Xiaoping cunha seus grandes mantras: “não importa a cor do gato, branco ou preto, desde que cace o rato” e “to get rich is glorious”.

Denominar o sistema econômico chinês de puro capitalismo iria completamente de encontro aos princípios do PCChinês. Por outro lado, Deng não queria que a China voltasse a ser uma economia central planificadora e nem socialista, que denota um passo anterior ao comunismo. Eis que Deng para agradar os críticos novamente sugeriu denominar o modelo econômico chinês de “economia socialista, com características chinesas”, o que na realidade trata-se de um capitalismo de estado.

Lógico que incautos formadores de opinião e PhDs em facebook, twitters discordam, mas há de se perguntar, como um país essencialmente comunista poderia contar com duas bolsas de valores (Shanghai e Shenzhen) com capitalização de mercado de mais de US$11 trilhões, fazer surgir bilionários como Jack Ma, receber investimentos diretos anuais de US$160 bilhões e ter empresas como Alibaba, Tencent, Baidu, Cherry, State Grid, Xiaomi, WeChat além dos 5 maiores bancos do mundo como o Industrial and Commercial Bank of China (ICBC), Bank of China (BoC), Agricultual Bank of China (ABC), China Construction Bank (CCB) e Bank of Communications (BoComm), além da empresa de serviços financeiros, China UnionPay? Até as folhas de lótus em pratos exóticos compreendem o modelo econômico que tem feito a China girar e crescer.  

2. Mas isso é importante? Para nós pobres mortais que lemos um ou dois livros, nem tanto, permitir que essa confusão entre comunismo e capitalismo de estado seja espalhada por um representante do governo brasileiro, ainda mais para minimizar o país é no mínimo vergonhoso. 

Mesmo assim não gosto da China. Entendo, mas quando o chanceler de um país que busca construir pontes e novas alianças apresenta explicações falaciosas para corroborar sua narrativa pouco rebuscada intelectualmente e ideológica a situação se torna desagradável e constrangedora. Além do que, quando um ministro de Estado fala ou discursa, é compreendido como sendo a opinião e o conhecimento do Brasil em relação à contraparte. Ai ficou feio.

O ex-chanceler deixou o governo em março deste ano e admitiu na CPI que o governo pediu que ele deixasse o cargo por pressão do Congresso — parlamentares estavam incomodados com atritos com a China e acreditavam que a atuação de Araújo prejudicava essa relação.


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Como disse, difícil lacrar que a verborragia do Itamaraty atrasou a entrega de vacinas ou insumos, mas certamente não ajudou. Seria esse o papel de um diplomata? O de destruir pontes ao invés de estreitar laços com outras nações, ainda mais por ideologia?

*Roberto Dumas é economista, professor do Insper e especialista em mercados asiáticos.

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