ChatGPT, inteligência artificial e propriedade intelectual

Poderia uma máquina ser considerada inventor?/Unsplash
Poderia uma máquina ser considerada inventor?/Unsplash
Ferramenta esconde possibilidades de ocorrência de plágio, não indicando claramente a fonte da informação.
Fecha de publicación: 15/02/2023

Ainda não adoçamos nosso café com bytes. Não temos carros voadores e nem uma Rosey para cuidar dos nossos afazeres domésticos. Mas as máquinas foram capazes de reviver Bach, com a criação de melodias a partir da inteligência artificial. Prometeu nos deu o fogo que agora queima a humanidade.

Então veio o DABUS ("Device for the Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience") – um tipo diferente de inteligência artificial, uma máquina criativa, capaz de funcionar de forma independente. Há uma grande diferença entre as criações assistidas pela inteligência artificial e aquelas geradas pela inteligência artificial. No primeiro caso, a intervenção humana é necessária, enquanto, no segundo, há uma contribuição humana mínima ou nenhuma.  O DABUS, desenvolvido por Stephen Thaler, criou invenções patenteáveis, dentre elas, um recipiente de alimentos baseado em geometria fractal.

Pedidos de patente foram apresentados em várias jurisdições indicando o próprio DABUS como inventor.  Mas poderia uma máquina ser considerada inventor?


Leia também: Inteligência Artificial como criadora: a memória perfeita da internet


Nos Estados Unidos, o pedido de patente foi rejeitado pois o DABUS não sendo reconhecida a condição de inventor ao algoritmo.  De fato, a seção 101 do Título 35, legislação aplicável às patentes naquele país, é bastante clara ao afirmar que quem inventar ou descobrir qualquer processo, máquina, manufatura ou composição de matéria nova e útil, ou qualquer melhoria nova e útil destas, pode obter uma patente. DABUS é um algoritmo e não pode ser um “quem”.

Na Europa, o pedido de proteção para a invenção seguiu o mesmo destino. A principal discussão enfrentada pelos escritórios de patentes é sobre quem é o inventor, e não a titularidade da patente.

No Brasil, a Procuradoria Especializada do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) emitiu o Parecer nº 00024/2022/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU, referente ao pedido de patente de invenção No. BR 11 2021 008931 4, figurando o DABUS como inventor. Entendeu o INPI, em setembro de 2022, que o art. 6º, da Lei 9279/96, a Lei da Propriedade Industrial, traz em sua essência direitos afeitos à personalidade do autor, como o direito de obter a patente (direito de autoria, no caput do mencionado artigo), o direito de ceder os efeitos patrimoniais da patente (§2º) e o de ser nomeado (§4º). Sendo assim, a figura do inventor deve necessariamente ser uma pessoa. 

No entanto, surpreendentemente, a Austrália e a África do Sul reconheceram o DABUS como um inventor – em uma decisão audaciosa de humanizar um conjunto desalmado de regras e fórmulas. 

Mas a lei australiana não exige que uma pessoa, física ou jurídica, seja um inventor – exige apenas um inventor. De acordo com o Tribunal Federal Australiano, (i) um inventor é simplesmente um substantivo - e um substantivo pode ser uma pessoa ou uma coisa; e (ii) ao contrário da lei de direitos autorais australiana, que prescreve direitos morais, não há nada na lei de patentes australiana que exclua inventores não humanos. Tudo o que não é proibido é permitido. 

Na África do Sul, apesar das grandes críticas, o escritório de patentes concedeu a patente figurando o DABUS como inventor sem maiores discussões ou dificuldade legal, argumentando-se que isso se deve a um ambiente político direcionado para promover a inovação. Assim, a concessão de patentes a inventores artificiais aflora como estratégia econômica ao desenvolvimento tecnológico de uma nação, promovendo um mercado mais receptivo às novas criações e, portanto, competitivo.

Finalmente, embora criações de obras artísticas por autores artificiais tenham surgido já na década passada (o projeto The Next Rembrandt, que criou a partir da inteligência artificial um quadro que poderia ser atribuído ao grande pintor, foi lançado à mídia em 2016), a novidade agora é que a ferramenta ChatGPT infiltrou-se na vida de quase todos os estudantes.

O ChatGPT é um chatbot – um robô de conversação – desenvolvido pela iniciativa OpenAI (a mesma do Dall-E, a inteligência artificial que cria imagens a partir de descrições) e lançado em novembro de 2022. A ferramenta entrega respostas elaboradas para perguntas nos mais diferentes domínios do conhecimento. Mas não só isso – o ChatGPT consegue escrever códigos de programação, compor obras literárias, como poemas, histórias, novelas, roteiros, sermões religiosos e até mesmo músicas. Vedete no mundo acadêmico, a ferramenta também faz o dever de casa, respondendo exatamente o que o professor pediu.

O ChatGPT também é capaz de contribuir “escrevendo” a parte introdutória de muitos artigos científicos, levantando preocupações éticas. Por exemplo, a ferramenta esconde possibilidades de ocorrência de plágio, não indicando claramente a fonte da informação. Ou, ainda, apesar de indicar a fonte correta da informação, pode entregar uma interpretação contendo erros, comprometendo o trabalho, apesar do argumento de autoridade. Porém, já existem ferramentas online que detectam se um texto foi gerado artificialmente, facilitando a vida dos professores que exigem que os textos dos seus alunos sejam gerados pessoalmente por tais estudantes.


Veja também: A gestão coletiva da propriedade intelectual em contextos digitais


Mas de quem seriam tais criações? Ou seja, quem é de fato o autor dos outputs do ChatGPT? Em relação à autoria, a lei de direitos autorais dos Estados Unidos prevê a proteção de obras originais. Desde 1973, o Compêndio do Escritório de Direitos Autorais (Compêndio III, na Seção 306) afirma que apenas obras criadas por um ser humano serão registráveis. Além disso, a Seção 313.2 prescreve que o Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos não registrará obras produzidas pela natureza, animais ou plantas, nem obras criadas por seres divinos ou sobrenaturais.

No Brasil, não é diferente. A Lei 9610/96, a Lei de Direitos Autorais, em seu art. 7º, determina que são obras intelectuais protegidas as criações do espírito – ou seja, a criação protegida requer a pessoa humana como criador. Logo, um algoritmo não pode ser autor. Sendo assim, tais criações de autor artificial não merecem proteção do direito autoral.Mas a questão do inventor e do autor são apenas a ponta do iceberg. Por exemplo, as invenções patenteáveis de inventor artificial criam outros problemas, como a completa mudança dos parâmetros de análise do requisito da não-obviedade (requisito da atividade inventiva) para a concessão de patentes, segundo o qual a invenção, para ser registrada, não pode ser atingida de maneira óbvia.

Em conclusão, os avanços estão lançados e, em vez de simplesmente focarmos os debates em quem é o inventor ou autor, as discussões também devem avaliar outros obstáculos práticos que a inteligência artificial pode trazer para a mesa, como os desafios do uso éticos de tais ferramentas.

*Clarisse De La Cerda, sócia de direito digital, transferência de tecnologia e proteção de dados do Bhering Advogados.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.