Clawback de incentivos de remuneração em falhas contábeis e ilícitos

Legislação trabalhista brasileira não contém regulamentação específica sobre o clawback/Canva
Legislação trabalhista brasileira não contém regulamentação específica sobre o clawback/Canva
Recentes determinações de autoridades dos Estados Unidos podem servir de guia de boas práticas para mitigar impactos às empresas.
Fecha de publicación: 07/03/2023

O mercado foi recentemente impactado pela divulgação, por uma relevante empresa de varejo, de inconsistências contábeis em cifras bilionárias. Também foi informada ao mercado, pelo Conselho de Administração da companhia, a criação de um comitê independente para apurar as circunstâncias que ocasionaram tais inconsistências.

Fatos como esse merecem análise à luz de recentes determinações de autoridades dos Estados Unidos, que podem servir de guia de boas práticas para mitigar impactos às empresas que venham a enfrentar situações similares. As orientações envolvem dois pontos centrais: a realização de investigação interna e o clawback (recuperação) de incentivos de remuneração (ex. bônus) dos executivos responsáveis pelas irregularidades.

O DOJ (Department of Justice) emitiu, em setembro de 2022, um memorando atualizando suas políticas para a persecução penal. Uma das novidades é a avaliação do DOJ, para mitigação de sanções à empresa investigada, sobre a existência e efetiva utilização, em seu programa de Compliance, de sistemas que permitam a responsabilização financeira de empregados envolvidos em ilícitos, tais como clawback, suspensão/escrow de compensação/bônus, dentre outras.


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Em outubro, a SEC (Securities and Exchange Commission) publicou regras que exigem de empresas listadas na Bolsa nos Estados Unidos uma política de recuperação de incentivos de remuneração de executivos, que deve ser aplicável em caso de descumprimentos contábeis que precisem de retificação, decorrente de erros ou fraudes. O valor do incentivo de remuneração a ser recuperado deve ser calculado com base na diferença entre o valor recebido e o que deveria ser recebido caso a falha não tivesse ocorrido. A recuperação deve ser aplicada independentemente de culpa.

No Brasil, infelizmente, o tema ainda não foi adequadamente tratado na legislação local, embora já seja possível perceber uma crescente preocupação em atrelar à remuneração de executivos a assunção dos riscos tomados na sua gestão.

Nossa legislação trabalhista não contém regulamentação específica sobre o clawback, trazendo apenas o conceito geral da Consolidação das Leis do Trabalho sobre o desconto de danos causados por atuação dolosa dos empregados, independentemente de previsão contratual. Já quando os danos forem causados de maneira culposa, há a necessidade de autorização contratual para que seja feito qualquer desconto na remuneração dos envolvidos. Também não há, ainda, jurisprudência trabalhista consolidada sobre a possibilidade de recuperação de remuneração paga a executivos identificados como responsáveis por irregularidades decorrentes de sua atuação culposa.

Além da regra geral trabalhista mencionada, empresas brasileiras têm utilizado atos normativos como referência, tais como a Resolução CVM 80/2022, que trata de transparência e políticas para remuneração de dirigentes e administradores, e a Resolução do Banco Central do Brasil nº 3.921/2010, que dispõe sobre a política de remuneração de administradores das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central.

Apesar de não tratarem especificamente das cláusulas de clawback, as Resoluções da CVM e do Banco Central fornecem elementos para sustentar sua validade no direito brasileiro. É importante frisar que elas têm caráter preventivo, ao criar mecanismos para evitar que os administradores conduzam suas decisões de modo a expor injustificadamente as instituições que representam, motivados, inclusive, pela intenção de atingir metas estabelecidas com a consequente percepção de remuneração de incentivo.

Embora a CLT não regulamente de forma adequada o clawback, é importante reforçar que a Reforma Trabalhista de 2017 introduziu o conceito do empregado "hipersuficiente”, que teria condições de negociar seus termos de contratação por possuir diploma de nível superior e receber salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios da Previdência Social. Apesar de não terem autonomia irrestrita para negociar seus contratos, não há impedimento para que esses executivos acordem sobre a inclusão da cláusula clawback, especialmente no caso de conduta culposa na gestão dos negócios. E, diferentemente da possibilidade de desconto previsto na lei, que exige não apenas uma ação dolosa, mas uma remuneração futura pendente que possa sofrer desconto, o clawback alcançaria a devolução de incentivos anteriormente pagos a executivos, ainda que dispensados em razão de comportamento culposo.


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O caso da varejista reforça a necessidade de regulamentação consistente que permita a responsabilização adequada dos tomadores de decisão pelos prejuízos advindos da sua conduta. Da mesma forma, as políticas de remuneração de executivos devem ser compatíveis com a gestão prudente de riscos a curto, médio e longo prazos.

O episódio deve trazer mais relevância e urgência ao Projeto de Lei nº 866/2019, atualmente no Senado, que prevê uma alteração na Lei Anticorrupção para estabelecer a restituição de incentivos financeiros devidos ou pagos a dirigentes e administradores que violarem aquela lei. As condições para o clawback seriam: a condução de investigação que confirme a violação da lei pelo executivo e existência de política e previsão contratual permitindo a recuperação.

Em um cenário global de riscos cada vez maiores e pela possibilidade de a empresa ser impactada por má conduta de seus dirigentes, é recomendável que as áreas de RH, Jurídico e Compliance de empresas revisem suas políticas de remuneração, bem como medidas disciplinares, além de atualizar seus contratos de trabalho desses executivos. Diante das lacunas apontadas, é essencial que seja previsto o direito de a empresa fazer o clawback de incentivos de remuneração, caso seja comprovada a violação de políticas da empresa que tenha causado prejuízos, mesmo que de forma culposa.

*Leticia Ribeiro C. de Figueiredo e Felipe Ferenzini, sócios do Trench Rossi Watanabe

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