A efetividade de medidas que visam à redução da poluição e das emissões de CO2 depende de escala, e pode, por isso, exigir cooperação entre empresas privadas concorrentes. Os líderes de tais empresas concorrentes, contudo, não podem agir em conjunto sem se preocuparem com as sanções que as leis de defesa da concorrência prescrevem para impedir acordos que afetem preços, quantidades ofertadas de produtos ou serviços ou áreas geográficas de atuação.
Preocupada com a dificuldade que a aplicação da legislação de defesa da concorrência pode gerar para a cooperação entre as empresas legitimamente interessadas em adotar medidas efetivas de proteção ao meio ambiente, a Comissão Europeia, por sua divisão de defesa da concorrência, publicou, em março de 2022, uma minuta de guia que contém, inclusive, orientações sobre as características de acordos de cooperação horizontal, ou seja, entre empresas concorrentes, que podem ser considerados lícitos, mesmo que limitem de alguma forma a livre concorrência.
O documento tem um capítulo dedicado à avaliação de acordos entre concorrentes que perseguem genuinamente “objetivos de sustentabilidade”. Essa minuta visa, portanto, a aumentar as oportunidades para que as empresas colaborem com o desenvolvimento sustentável, sem que suas condutas sejam consideradas práticas anticompetitivas e, por isso, sujeitas a pesadas multas e outras sanções.
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Nos termos da proposta de guia da Comissão Europeia, “objetivos de sustentabilidade” são aqueles que visam à eliminação da poluição, redução das emissões de CO2 e, entre outros aspectos, respeitem os direitos humanos ou garantam o bem-estar dos animais. A Comissão Europeia reconhece em tal documento que os acordos de sustentabilidade não suscitam preocupações em matéria de defesa da concorrência e são, portanto, presumidamente lícitos, quando não afetam preços, quantidades ofertadas, qualidade, escolha ou inovação.
A minuta do guia deixa claro que os “acordos relativos à criação de uma base de dados que contenha informações sobre os fornecedores que têm cadeias de valor sustentáveis, utilizam processos de produção sustentáveis e fornecem insumos sustentáveis, ou sobre os distribuidores que vendem produtos de forma sustentável, sem exigir que as partes adquiram desses fornecedores ou vendam a esses distribuidores, não levantarão, de um modo geral, preocupações” [de natureza concorrencial].
Ainda segundo a proposta de guia da Comissão Europeia, uma parceria entre concorrentes que restrinja a concorrência pode ser tratada como um acordo lícito se apresentar ganhos de eficiência objetivos, concretos e verificáveis, e se as empresas forem capazes de demonstrar sua indispensabilidade para a concretização dos benefícios visados.
Nesse caso, as empresas podem justificar sua conduta concertada se o acordo não eliminar totalmente a concorrência no mercado relevante e se uma parte justa dos benefícios resultantes das eficiências for repassada ao consumidor. Contudo, a Comissão Europeia também sinaliza que, para que os benefícios coletivos de determinada cooperação entre concorrentes sejam aceitos como suficientes para afastar uma punição por conduta anticompetitiva, as empresas deverão ser capazes de: “(a) descrever claramente os alegados benefícios e fornecer elementos de prova de que já ocorreram ou são suscetíveis de ocorrer; (b) definir claramente os beneficiários; (c) demonstrar que os consumidores no mercado relevante se sobrepõem substancialmente aos beneficiários ou fazem parte deles; e (d) demonstrar que parte dos benefícios coletivos que ocorrem ou são suscetíveis de ocorrer fora do mercado relevante revertem para os consumidores do produto no mercado relevante.”
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Neste ponto, que parece exigir a compensação total dos consumidores diretos prejudicados, com preços maiores ou redução de oferta, pelos acordos de sustentabilidade, a proposta de guia da Comissão Europeia tem sofrido críticas importantes. Para o presidente da autoridade de defesa da concorrência da Holanda, Martijn Snoep, por exemplo, “não há justificativa sensata para [a Comissão Europeia] exigir que os consumidores [diretos das empresas concorrentes envolvidas no acordo que afeta preços e quantidades ofertadas em determinadas regiões] sejam integralmente compensados por, em essência, não contribuírem para as mudanças climáticas.”
Para ele, é mais justo e eficiente que as empresas signatárias de um acordo indispensável à redução da emissão de gases de efeito estufa fiquem imunes às leis de concorrência se os benefícios totais – para toda a sociedade - de tal acordo superarem os efeitos negativos sobre os preços e escolhas para os consumidores diretos afetados negativamente pelo acordo.
Espera-se que a Comissão Europeia considere essa e outras críticas, publicando, no futuro próximo, o guia com orientações ainda mais claras sobre a avaliação de licitude dos acordos de sustentabilidade firmados por concorrentes. Isso tende a influenciar outras autoridades de defesa da concorrência, como o nosso Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que ainda não se envolveu diretamente nesse debate.
*Leonardo Rocha e Silva e Julia Costa Cupertino são, respectivamente, sócio e integrante de Pinheiro Neto Advogados.
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