Como fica o Código de Defesa do Consumidor a partir da vigência da LGPD?

Respeitar as normas de proteção de dados pessoais evita que consumidores sofram discriminações indevidas em razão dos seus perfis/Pixabay
Respeitar as normas de proteção de dados pessoais evita que consumidores sofram discriminações indevidas em razão dos seus perfis/Pixabay
Juntas, normas diminuem lacunas e fornecem novos parâmetros regulatórios.
Fecha de publicación: 19/05/2021

Com a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), algo se tem dito a respeito de seu impacto sobre as atividades tratamento de dados pessoais de usuários por plataformas digitais para personalização de ofertas – como a alteração de elementos constitutivos de produtos e serviços, inclusive de preços, de acordo com o perfil do consumidor.

A lei traz consigo uma relevante oportunidade de suprir lacunas e fornecer parâmetros regulatórios mais sólidos ao tratamento da questão, hoje disciplinada apenas por interpretações feitas com base nas normas gerais do Código de Defesa do Consumidor (CDC), de 1990.


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A lei tem o potencial de trazer maior clareza à questão em relação a dois aspectos cruciais.

Primeiro, há a questão do cumprimento dos deveres de transparência pelas plataformas digitais. O CDC prevê hoje o direito dos consumidores a “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços”, mas não especifica as formas de cumprimento desse dever por vendedores em contextos digitais.

O texto não é suficientemente detalhado: pode-se extrair dele que plataformas estão obrigadas a informar consumidores sobre o fato de que suas ofertas são personalizadas, mas nada consta sobre o nível de detalhamento exigido para a informação ou os procedimentos a serem adotados para que consumidores tenham acesso a elas.

A LGPD parece suprir em parte essa omissão, fornecendo um arcabouço principiológico mais robusto. O novo diploma adota como princípios não apenas a transparência, mas também a finalidade e o livre acesso.

Embora a lei não faça referência específica a como tais princípios se aplicam à personalização de ofertas, os seus dispositivos esclarecem uma série de prerrogativas de consumidores em face de plataformas: o titular de dados tem direito a informações prévias sobre o tratamento, a serem fornecidas via termos de uso e políticas de privacidade; e o direito de livre acesso, que permite ao usuário obter da plataforma informações sobre os dados coletados e critérios empregados para personalização de ofertas, resguardado o segredo empresarial.

A elas, soma-se o direito do consumidor de solicitar, a qualquer momento, o fim do tratamento e eliminação dos dados, interrompendo a personalização.

Há, também, o aspecto da prevenção a discriminações abusivas. O CDC possui disposições gerais a respeito do tratamento discriminatório a consumidores, vedado pelos dispositivos do diploma que asseguram o direito à igualdade nas contratações, a proibição à recusa de atendimento e venda de bens serviços a quem se dispuser a adquiri-los e a elevação, sem justa causa, de preços de produtos e serviços.

A aplicação dessas regras, contudo, parece depender da formação de um entendimento sobre as situações nas quais a personalização de ofertas com base em dados pessoais de consumidores pode acarretar práticas discriminatórias.

Por essa razão, tal análise não prescinde de um exame de situações concretas e das justificativas apresentadas pelos intermediários, com base no funcionamento de seus modelos de negócio, para personalizar ofertas com base no tratamento de dados pessoais de usuários.

A LGPD, por sua vez, dá parâmetros ao combate às práticas discriminatórias no tratamento de dados com a regulamentação do processamento de dados pessoais sensíveis - aqueles que dizem respeito à “origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico” de pessoa natural.

A LGPD ainda cria mecanismos procedimentais relevantes relativos ao combate à discriminação algorítmica, garantindo ao titular o direito de acesso a “informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada, observados os segredos comercial e industrial”.

Na hipótese de que o controlador venha a recusar o fornecimento de tais informações em razão de segredo comercial ou industrial, a lei ainda faculta à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) a prerrogativa de instaurar auditoria para verificar eventuais práticas discriminatórias no tratamento de dados.

A despeito dessas considerações, há outra questão em aberto, que deve ser enfrentada para possibilitar a construção de um arcabouço coerente e seguro ao tratamento da questão: a extensão da aplicabilidade do CDC ao tema, a partir da vigência da LGPD.

Ainda não é claro até que ponto faz sentido que a legislação consumerista, de aplicação mais ampla e genérica, continue a ser evocada como fundamento para regular a personalização de ofertas em marketplaces quando o Direito brasileiro tem em vigor uma lei de disposições mais desenvolvidas e voltadas especificamente ao tratamento da questão – ainda mais quando não há contradição aparente entre os dois diplomas, mas complementação.

Uma interpretação que dê maior prestígio à segurança jurídica, assim, parece sugerir que, estando vigente a LGPD, o CDC já não seja mais a base normativa apropriada para se buscar parâmetros de transparência ou para identificação de situações discriminatórias na personalização de ofertas.

O arcabouço principiológico da LGPD, mais atual e detalhado, traz um conjunto de ferramentas mais apto a operacionalizar o exercício de direitos por consumidores e garantir um tratamento legítimo, adequado e proporcional de seus dados pessoais.


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A observância das normas de proteção de dados pessoais, por sua vez, evita que consumidores sofram discriminações indevidas em razão dos seus perfis. Nesses casos específicos, os princípios de proteção de dados parecem abarcar, também, a proteção fornecida pela legislação consumerista – o que justifica que a LGPD ganhe prioridade sobre o CDC.

*Alexandre Pacheco da Silva é professor da FGV Direito SP e coordena o Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (FGV - Cepi). Victor Doering Xavier da Silveira é pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação, da FGV Direito SP (FGV-Cepi).

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