A conta Covid e o socorro de 16 bilhões de reais para o setor elétrico

Com redução das atividades econômicas, especialistas estimam diminuição de 4,2 % no consumo de energia elétrica até o final de 2020/Fotos Públicas
Com redução das atividades econômicas, especialistas estimam diminuição de 4,2 % no consumo de energia elétrica até o final de 2020/Fotos Públicas
Valor será repassado aos consumidores entre 2021 a 2025, na conta de energia.
Fecha de publicación: 07/07/2020
Etiquetas: energía

Diante das dificuldades financeiras decorrentes da crise da pandemia do novo coronavírus, completou-se, no fim de junho, o processo decisório da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) relativo à regulação dos procedimentos voltados a propiciar aporte de recursos financeiros para o setor elétrico, que gira em torno da criação de uma “Conta-Covid”.

Com a drástica redução das atividades econômicas, em razão das diretrizes de distanciamento social recomendadas para o enfrentamento da pandemia, o setor estima uma diminuição no consumo de energia elétrica da ordem de 4,2 % até o final de 2020, com correspondente retração de receitas estimada em R$ 6,38 bilhões.

 

Outra faceta da crise da pandemia a afetar o setor elétrico foi o aumento da inadimplência, decorrente da perda de renda de parcela significativa da população e das empresas, associada à vedação da suspensão de fornecimento por falta de pagamento para alguns grupos de consumidores, determinada pela Aneel e por governos estaduais. A retração de receita estimada até o final de 2020 em razão da inadimplência é de R$ 8,04 bilhões, correspondente ao seu aumento da média anterior de 1,8% para 8,1% no período da pandemia.

 

Conta-Covid

 

Face a esse panorama, decidiu-se promover o terceiro grande resgate bilionário para o setor elétrico neste século, depois do “Acordão/RTE” de 2002 e da “Conta-ACR” de 2014. Agora é a “Conta-Covid” de 2020. Para isso, estruturou-se o socorro legal por meio de uma pirâmide normativa composta pela Medida Provisória nº 950, de 8 de abril, Decreto nº 10.350, de 18 de maio, e Resolução Normativa ANEEL nº 885, de 23 de junho.

 

Assim, engendrou-se uma operação complexa, pela qual a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) tomará empréstimos bancários que serão internalizados numa conta específica, denominada Conta-Covid. Ela proverá recursos para garantir liquidez às concessionárias e permissionárias de distribuição de energia elétrica, conforme as respectivas necessidades, definidas por critérios técnicos previstos nos citados atos normativos. Essa etapa do processo está programada para ocorrer de julho de 2020 a janeiro de 2021.

 

No sentido contrário, com vistas a arrecadar os recursos necessários ao futuro repagamento dos empréstimos bancários a serem tomados, foi criado um encargo setorial específico, denominado CDE-Covid, cujas quotas serão cobradas mensalmente dos consumidores atendidos pelas concessionárias e permissionárias de distribuição de energia elétrica no período de 2021 a 2025.

 

Pelas estimativas da Aneel, para a implementação desse socorro setorial serão necessários R$ 16,16 bilhões, sendo que, além dos R$ 6,38 bilhões para cobrir a redução de mercado e dos R$ 8,04 bilhões para compensar a inadimplência dos consumidores, estão incluídos mais R$ 1,74 bilhões relativos, dentre outros itens, a incrementos tarifários que ocorreriam até o final de 2020, mas que foram e serão adiados, para evitar aumentos para os consumidores nesse período.

 

Vê-se, portanto, que parte significativa dos recursos previstos corresponde a desonerações de consumidores, seja pela inadimplência, seja pelo diferimento de aumentos tarifários. Porém, o certo é que, depois, serão eles, os consumidores, que arcarão com todos os ônus da Conta-Covid, ainda que diluídos ao longo de 5 anos. Ou seja, pagarão até mesmo os R$ 6,38 bilhões pela energia que não consumiram, nem consumirão, para compensar a retração do mercado das distribuidoras.

 

Blindagem

 

Sob outra ótica, a maior parte dos recursos destina-se a “blindar” as distribuidoras dos efeitos da perda de mercado e da inadimplência de seus consumidores, o que dá margem ao questionamento de que estariam elas tendo um tratamento privilegiado, não dado à grande maioria dos demais setores e agentes econômicos.

 

Em defesa dessa proteção tem-se que os serviços de energia elétrica, dada sua essencialidade, mormente durante pandemia, não poderiam ficar expostos aos riscos de mercado, no limite, aos riscos de quebra. Com efeito, na atual crise sanitária a energia elétrica é fundamental, dentre outros fins, para a operação dos equipamentos hospitalares utilizados no tratamento do novo coronavírus, assim como para propiciar condições adequadas a quem pode se valer do home office e de outras atividades domésticas decorrentes do distanciamento social.

 

Ademais, as distribuidoras constituem a principal porta de entrada de recursos para a cadeia produtiva da energia elétrica, transferindo parte substancial dos valores que arrecadam para as transmissoras e as geradoras, além de recolherem diversos tributos e encargos setoriais. Essas transferências somadas chegam a até 82% do que as distribuidoras recebem, ficando elas com apenas 18%.

 

Aspectos para prestar atenção

 

Finalmente, dois aspectos jurídicos merecem nota. Em primeiro lugar, causa estranheza o apelo normativo ao que se pode considerar uma “coação legal”, constituída pela exigência de que, para receber os recursos da Conta-Covid, as distribuidoras tenham que renunciar previamente ao direito de eventualmente discutí-la em juízo, o que afronta a garantia constitucional do livre acesso ao Judiciário.

 

Em segundo lugar, cabe ressaltar que, como visto, o arcabouço normativo que embasa o socorro constituído pela Conta-Covid está alicerçado em uma Medida Provisória, a de nº 950/2020, ainda em trâmite no Congresso Nacional. Ora, como se sabe, as medidas provisórias têm vigência imediata desde sua edição pelo Poder Executivo, mas sujeitam-se ao exame pelo Poder Legislativo, que pode acatá-las no todo ou em parte, modificá-las ou mesmo rejeitá-las. Isso, somado ao tratamento confuso que lhe foi dado pela Medida Provisória nº 950/2020, faz com que a Conta-Covid reste envolta em grau razoável de insegurança jurídica.

 

De qualquer modo, mesmo distantes do socorro de R$ 1,2 trilhão dado pelo governo federal ao setor bancário três meses antes, em março de 2020, os R$ 16,16 bilhões a serem injetados na economia via distribuidoras de energia elétrica constituem montante expressivo, que chegará para elas em boa hora.

 

*David Waltenberg é head da área de energia da SiqueiraCastro.

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