Contratações públicas na pandemia, sobrepreço e superfaturamento

Há diferenças entre preço de mercado, preço de referência/orçado, preço praticado e preço registrado/Marcelo Seabra/Ag.ParáMarcelo Seabra/Ag.Pará
Há diferenças entre preço de mercado, preço de referência/orçado, preço praticado e preço registrado/Marcelo Seabra/Ag.ParáMarcelo Seabra/Ag.Pará
A administração deve estipular, no edital ou previamente à aquisição, qual o preço de mercado do bem ou do serviço que necessita.
Fecha de publicación: 04/09/2020

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A Polícia Federal conduziu diversas operações nos últimos meses por supostos atos de corrupção em contratações públicas para aquisição de serviços e bens necessários ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. O caso que recebeu mais atenção dos meios de comunicação foi do estado do Rio de Janeiro, cujo governador foi afastado, primeiro, por decisão monocrática e, depois, por decisão colegiada do Superior Tribunal de Justiça.

Entre esses diversos casos objeto de operações policiais, nosso artigo volta olhos para o tema de fundo daqueles em que as autoridades alegam ter havido superfaturamento sobrepreço em contratações emergenciais e imprescindíveis para o combate à pandemia.

Em qualquer contratação pública, com ou sem dispensa de licitação, a administração deve estipular, no edital ou previamente à aquisição, qual o preço de mercado do bem ou do serviço que necessita contratar. Deve ainda estar atenta ao preço registrado para esse bem no Sistema de Registro de Preços.

Há diferenças entre preço de mercado, preço de referência/orçado, preço praticado e preço registrado, as quais devem ser explicadas, pois essas distinções são premissas ao entendimento do que vem a ser superfaturamento e sobrepreço.

Primeiramente, o preço de mercado pode ser estipulado internamente pelo órgão público interessado na aquisição do bem e/ou do serviço. Deve ser aferido por meio de pesquisas que não se limitem à consulta de apenas três orçamentos com fornecedores. O levantamento a ser feito deve ser amplo o suficiente a fim de ser fidedigno e confiável.

Ao lado do preço de mercado pesquisado pela administrador, ele deve levar em consideração ainda o preço registrado, que é dado pelo Sistema de Registro de Preços da Administração Pública (v. artigo 15, da Lei 8.666/1993). Analisados esses parâmetros, o administrador fixa seu preço de referência para o processo licitatório.

Antes, assim, da pesquisa e investigação sobre hipotético delito e irregularidades na aquisição de bens e serviços, deve-se analisar como ocorreu a formação do preço de referência da licitação e quais foram as negociações realizadas até o preço praticado.

Feitas essas distinções, o TCU possui entendimento de que, por superfaturamento, deve-se entender o pagamento de bens e/ou serviços por valores superiores àqueles praticados pelo mercado. Por sobrepreço, esse órgão de controle entende a hipótese em que o preço de referência/orçamento é superior ao do mercado (Acórdão 310/2006).

Para fins de haver hipotético delito penal, tanto o superfaturamento, como o sobrepreço devem ocorrer com a ciência e má-fé do administrador público, e não pode haver justificativa econômica ou administrativa para que o preço praticado seja superior ao de mercado, ou ao de referência. O superfaturamento não necessariamente é doloso e criminoso, segundo as previsões típicas da Lei 8.666/1993, podendo ocorrer por culpa, por erros administrativos e/ou falhas na licitação, o que não elimina, porém, a possibilidade de dano ao erário e eventuais atos de improbidade administrativa.

De todo modo, nas duas hipóteses, superfaturamento e sobrepreço, é relevante saber quais são os preços registrados nos sistemas púbicos disponíveis. Para a área da saúde, o TCU possui entendimento de que o Banco de Preços em Saúde, organizado por servidores de vários ministérios, é válido como referência à aquisição de medicamentos, seja pelo gestor público para balizar o preço de suas contratações, seja pelos órgãos de controle para avaliar a economicidade dos contratos (Acórdãos nºs 2901/2016 e 10531/2018).

Malgrado esse entendimento, há de se considerar que as informações do BPS são consolidadas por uma Câmara Técnica cujo último encontro, segundo o site do Ministério da Saúde, ocorreu faz mais de quatro anos. Assim, é de se esperar que a consolidação desses dados possa estar naturalmente defasada.

Defesado ou não o BPS, o arcabouço básico de parâmetros a ser utilizado na análise de eventuais sobrepreços e superfaturamentos unitários é constituído, portanto, pelo seguinte: pesquisa do preço de mercado, preço de referência, preço praticado, e preço referenciado de sistemas públicos.

No preço de mercado, de referência/orçamento e praticado, a realidade do momento e as condições concretas de barganha se impõem ao administrador público. Um aumento inesperado e/ou excessivo da demanda é justificativa para um aumento dos preços. A aquisição de um determinado material em grande quantidade, como na ata de registro de preços, é legítima para a diminuição do preço unitário, tanto como a aquisição em pequena quantidade pode levar a preços superiores. Assim, as comparações devem sempre levar em consideração situações absolutamente similares e não simplesmente preços praticados anteriormente.

Nos casos recém divulgados de operações da Polícia Federal, as suspeitas de irregularidades e superfaturamento, segundo divulgado, giraram em torno dos recebedores das ordens de pagamento (microempresas, de pequeno porte, ou de fachada, no caso do Amapá), ou ainda dispensas de licitação e pagamentos e compras de empresa com objeto social sem relação com os respiradores adquiridos (caso do Amazonas).

Em outros casos, como o ocorrido com a prefeitura de Fortaleza, as irregularidades residiriam na falta de capacidade da empresa contratada e no preço superior àquele que o estado teria praticado para o equipamento similar. Na investigação sobre as compras de respiradores no Pará, a suspeita residiu no suposto superfaturamento de qualidade desses equipamentos somada à dispensa de licitação.

Todos esses episódios merecem acompanhamento das eventuais denúncias do Ministério Público Federal e das respectivas decisões judiciais, se o caso, de mérito que venham a ser proferidas, pois os argumentos a serem apresentados poderão influir em novos fatores para a análise de eventual superfaturamento e/ou sobrepreço.

*Fernando Barboza Dias é sócio do escritório De Paula Ribeiro Dias Sociedade de Advogados.

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