Uma vez ouvi de um professor que a execução é a razão de ser do Poder Judiciário, pois, de que serviria uma sentença condenatória, ou um título que expresse a existência de uma dívida, sem que, de fato, esse crédito pudesse ser satisfeito por meio da expropriação do patrimônio do devedor?
Em nosso atual sistema, apenas ao Estado-juiz é conferido o poder de adentrar na esfera do patrimônio do devedor para buscar compeli-lo a pagar suas dívidas e dar efetividade ao direito materializado. Com isso, o Poder Judiciário acabou se assoberbando de processos de execução que, segundo os dados do relatório do CNJ, Justiça em Números 2022, são a maioria (53,3%) e os mais longos (5 anos e 11 meses).
Buscando reduzir esse gargalo de Execuções de dívidas que já chegam ao judiciário após diversas tentativas de recuperação do crédito, foi apresentado, em 2019, o Projeto de Lei n. 6.204/2019 que tem por objeto a desjudicialização das execuções civis. Na prática, o projeto busca a delegação das funções, atos e procedimentos executivos às serventias extrajudiciais.
Não é de hoje que nossos legisladores buscam desjudicializar determinadas matérias, delegando atividades anteriormente praticadas com exclusividade pelo Estado-juiz às serventias extrajudiciais, como, por exemplo, a possibilidade de realização de inventário, separação e divórcio, além das retificações de registros e usucapião, todos de maneira extrajudicial.
Com isso em mente, o PL n. 6.204/2019 cria a figura do agente de execução, que será o tabelião do cartório que ficará responsável por conduzir os atos de execução perante as serventias extrajudiciais, desde o seu requerimento, a citação do executado, até os atos de expropriação, pagamentos e extinção.
Da tramitação do projeto, ainda na casa iniciadora (Senado) desde 2019, verifica-se que já foram apresentadas 25 emendas, a maioria buscando diminuir o poder de alcance da execução civil perante o cartório, seja reduzindo o valor das dívidas que podem ser cobradas a no máximo mil salários-mínimos, seja tratando de quem pode ser parte nesses processos, excluindo, além dos já citados no parágrafo único do artigo 1º, também o espólio ou quem o represente.
Observa-se, das emendas apresentadas, que as maiores críticas ao Projeto de Lei dizem respeito ao poder conferido ao tabelião, com justificativas de que o poder de expropriação de bens não poderia ser delegado; algumas sugerem a necessidade de prévia autorização do juízo e outras sugerem até mesmo a supressão desse poder, de modo que a execução seguiria no cartório apenas em sua fase inicial de citação e possível tentativa de realização de acordo, retornando à esfera judicial caso o adimplemento não se fizesse de maneira voluntária.
No entanto, essas críticas não se sustentam, em especial se levarmos em consideração os princípios do processo civil, em especial a busca pela solução integral do mérito, inclusive a atividade satisfativa, como disposto no artigo 4º do Código de Processo Civil, além dos princípios de eficiência, celeridade e economia processual que serão devidamente satisfeitos com desjudicialização sugerida.
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Mesmo em nosso sistema atual de execuções já há diversos atos executivos que não são praticados pelo magistrado condutor do feito e sim por pessoas sob seu controle, como os atos de penhora, praticados pelos Oficiais de Justiça, os atos de avaliação pelo Avaliador Judicial e os atos de leilão, pelo Leiloeiro Público.
Com a desjudicialização, o agente de execução conduzirá o processo, mas, sempre que necessário, de ofício ou a pedido das partes ou terceiros, poderá consultar o juízo competente para sanar dúvida relevante, como expressamente previso nos incisos IX e X do artigo 1º do PL 6.204/2019, poderá consultar também sobre questões relacionadas ao título exequendo e ao procedimento executivo, além de, havendo necessidade, requerer ao juízo a determinação de medidas coercitivas, como disposto no artigo 20 do PL.
A perfeita adequação e constitucionalidade do Projeto já foi questionada, contudo, como bem destacaram Paulo Henrique Lucon, Luciano Araújo e Rogéria Fagundes Dotti, “a desjudicialização das execuções constitui uma opção legislativa que não viola qualquer garantia constitucional”.
Como se vê do artigo 236 da CF, os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público e a atividade é exercida por tabeliães aprovados em concurso público de provas e títulos, devidamente fiscalizados na esfera local pelos Tribunais locais e, nacionalmente, pelo Conselho Nacional de Justiça.
O Projeto prevê ainda que as partes devem ser representadas por advogado e assegura todas as garantias constitucionais de contraditório e ampla defesa, seja pela suscitação de dúvidas e consultas acerca do procedimento, como demonstrado acima, seja possibilitando a oposição de embargos à execução, que serão analisados pelo juízo competente, como previsto no artigo 18 do PL 6.204/2019.
Na verdade, o projeto traz vários avanços que podem auxiliar a elevar as taxas de recuperação de crédito no Brasil, como a possibilidade de acesso, pelo tabelião, a todos os termos, acordos e convênios fixados com o Poder Judiciário para consulta de informações, endereços e bens dos devedores.
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Além disso, o Projeto de Lei ainda dispõe, em seu artigo 28 que os Estados e o Distrito Federal definirão as tabelas de emolumentos iniciais e finais pertinentes à quantia objeto da execução. Como se sabe, a atividade dos tabeliães é exercida em caráter privado e sua remuneração depende do trabalho que presta. Assim, o PL traz um grande estímulo para a busca pela satisfação do crédito, na medida em que os emolumentos finais só serão recolhidos quando do pagamento e extinção da execução.
Outro avanço interessante é o trazido no artigo 12 do PL, que dispõe que o agente de execução, mesmo sem pedido das partes, ou seja, de ofício, lavrará certidões referentes ao início da execução, ao arresto e à penhora para fins de averbação nos registros competentes, desburocratizando e agilizando os entraves encontrados em algumas serventias judiciais. Por fim, o Projeto ainda prevê, em seu artigo 25, que, querendo, podem os credores buscarem a redistribuição de suas execuções para os agentes de execução.
Diante disso, tem-se que o Projeto é bem-intencionado e, diante da experiência recente em outros casos de delegação de funções às serventias extrajudiciais, possui grandes chances de ser bem-sucedido e resolver, com criatividade, diversos problemas de uma vez só, reduzindo o gargalo das execuções no Poder Judiciário, elevando as taxas de recuperação de crédito e, consequentemente, reduzindo as taxas de juros no país.
*Fernanda Regina Negro de Oliveira é coordenadora jurídica no Escritório Ernesto Borges Advogados, atuando no contencioso estratégico e consultivo, além de dar suporte jurídico para as demais áreas do escritório. Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Membro da Comissão de Sociedade de Advogados da OAB/MS.
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