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O planejamento tributário, enquanto atos praticados pelo contribuinte, exige uma análise de enquadramento dentro das categorias lícitas existentes no sistema tributário. A questão, desde o princípio, é saber quais são os limites estabelecidos para elaboração deste projeto tributário, quando pode ser afirmado que houve a quebra das barreiras legais e quem tem a competência para estabelecer os limites aplicáveis ao planejamento tributário.
Em contexto histórico, em 1966, com a edição do Código Tributário Nacional, foi incluído o artigo 149 impondo vedação aos atos evasivos, destacadamente nos casos de dolo, fraude ou simulação. O Carf em muitas oportunidades já decidiu sobre o assunto, a exemplo do Acórdão de Recurso Voluntário n.º 106-09343, que tratava dos objetivos visados com a prática dos atos não interferem na qualificação dos atos praticados (publicado em 18/09/1997).
No ano de 2001 começa um novo marco, com a inclusão do parágrafo único do artigo 116 no Código Tributário brasileiro, inserido pela Lei Complementar 104, que passa a tratar dos atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo, ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, tornando-os nulos. No entanto, a aplicação da lei antielisiva dependia de lei ordinária regulamentar.
Assim, a Medida Provisória 66 de 2002 tratou da regulamentação, inclusive definindo conceitos indeterminados, como abuso de direito e abuso de normas, institutos estes que não estariam presentes no Código Tributário Nacional e que não foram convertidos em Lei. A referida MP não foi convertida em Lei, mas trouxe à tona termos repetidos em decisões administrativas, como falta de propósito negocial ou abuso de forma.
Passados mais de dez anos, em 2015, ainda se tentou por outra Medida Provisória (685) regulamentar o procedimento, com o intuito de definir conceitos que não foram igualmente recepcionados pelo legislador. Entretanto, a referida MP não foi convertida em lei.
Contudo, até o presente ano de 2020 não foi editada a Lei antielisiva, para definir quais são os critérios, mecanismos competentes e quais os procedimentos para conhecer os chamados limites do planejamento tributário frente à dissimulação.
Situação que ainda na época da Lei Complementar 104 de 2001 já levava uma provocação ao Supremo Tribunal Federal pela ADI 2446, defendendo-se, em suma, a tese de que o art. 116 do CTN deixa os contribuintes sem garantias das operações que fizeram, pois o agente fiscal poderá desqualificar a operação.
Essa análise leva em consideração se o contribuinte praticou atos com propósito negocial, ou não, como abordagem do Acórdão n.º 9101-004.335, de 09/09/2019, da Primeira Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf). A decisão do STF pode trazer contornos grandes para o tema e falta apenas um voto para seu desfecho.
A lacuna da Lei proporciona iniciativas para intepretações tanto do fisco quanto do contribuinte e que, por vezes, pode incorrer em lançamentos equivocados, compelindo o contribuinte a agir com critérios subjetivos que inviabilizam ambientes de negócios. Por outro lado, abre margem para que o contribuinte cometa a evasão fiscal.
Existe na doutrina pelo Fisco e pelo Carf certa controvérsia sobre o enquadramento daquilo que se denomina planejamento tributário abusivo, ou o abuso no “uso” do direito a ser praticado pelo contribuinte. Mas o que se vê é a falta de limites legais – diga-se aqui por meio competente – para seu enfretamento, principalmente nos casos de multa qualificada, do qual o fisco se utiliza em suas fiscalizações.
Para melhor compreender, a Lei 9.430 de 1996 passou a dispor em seu artigo 44 que, nos casos de lançamento de ofício (aquele do art. 149 do CTN), serão aplicadas multas, entre estas a aplicação da multa de 75% sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata.
Ocorre que esta multa será qualificada, isto é, aplicada de forma duplicada (150%), nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, onde diz que sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária sobre o fato gerador, descrendo ainda o que vem a ser fraude e conluio, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis.
Em outras palavras, existe a “legalidade” de pagar menos tributo, desde que por meio de condutas legítimas. Ainda que, tanto o planejamento tributário quanto o planejamento tributário abusivo possam ter em sua base inaugural atos lícitos, após a análise do Fisco poderão ser tidos como não tolerados em razão de seus fins comprovadamente fraudados, de preferência por procedimento a ser regulado pelo legislador competente. Neste ponto, quando a redução tributária é o objetivo final por meio de mecanismos (dis)simulados, sobrevém a hipótese fiscal da sonegação, fraude ou conluio, que estão previstos conceituadamente na Lei nº 4.502/64.
A título de ilustração, se por um lado é dado aos contribuintes a liberalidade de realizarem (re)organizações de atividades tributáveis, por outro, os mecanismos artificiais de fraude, simulação e sonegação fiscal não são tolerados, justificando, inclusive, a persecução penal.
Na esfera federal, abre-se inclusive representação fiscal para fins penais. Mas é necessário que se demonstre de forma indubitável esta prática ilícita, a qual não pode ser absorvida por mero debate de interpretação legislativo fiscal, pois que afastam o dolo em sua essência.
Muito além, a Súmula 14 do Carf é elucidativa deste sentido, onde diz que a simples apuração de omissão de receita ou de rendimentos, por si só, não autoriza a qualificação da multa de ofício, sendo necessária a comprovação do evidente intuito de fraude do sujeito passivo.
Assim como nos processos administrativos sancionadores, cabe à autoridade lançadora demonstrar de maneira pormenorizada suas razões (motivações) no sentido de que o contribuinte com a intenção de lesar o fisco, para efeito da conclusão/comprovação do ilícito arquitetado pelo autuado.
Mas não tão somente, deverá apontar fatos e fundamentos, com suas provas, não bastando somente indícios ou presunções, principalmente quando o legislador se mantém omisso nos casos do parágrafo único do art. 116 do CTN.
No direito tributário, em que pese a regra do ônus da prova dos fatos constitutivos do direito ser do interessado/contribuinte, percebe-se que nos casos de caracterização de ilícitos houve uma espécie de distribuição do ônus da prova, a fim de que a fiscalização tivesse também que suportar o encargo de provar com elementos indispensáveis à comprovação do ilícito ocorrido, cabendo, portanto, à fiscalização a caracterização de mais elementos que pudesse imputar o consilium fraudis, no que diz respeito ao animus fraudulento, ou também o animus simulandi.
Por isso que, a aplicação de multa qualificada depende da inexistência de dúvida quanto ao caráter doloso da conduta, sendo imprescindível a produção de prova por parte da fiscalização, até porque já existe uma penalidade (de ofício) para o simples fato de não pagamento de tributo (Leandro Paulsen, in Direito tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 17 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; 2015. pág. 882/883).
Exemplo dessa análise se verifica no Acórdão 2301-006.321, de 06.08.2019, do CARF, onde o colegiado entendeu de forma unânime excluir a qualificação da multa e afastar a responsabilidade solidária dos sócios administradores, num caso em que se debate sobre possível planejamento tributário abusivo de uma sociedade médica.
De tudo que se põe, é uma forma como se deu a caminhada que faz complexa a análise do planejamento tributário no Brasil, necessitando de parâmetros mais claros para o referido instituto, a fim de que se tenha controle maior dos atos discricionários imotivados pelo Fisco, pela falta de proteção jurídica (omissão das regras por ente competente para tanto).
Certo é que o legislador realmente pretende proteger a evasão de tributos pela (dis)simulação e, inclusive com penas mais severas em determinados casos dolosos, não só para fins de recolhimento fiscal, mas também objetivando a tutela penal, protegendo assim o interesse público.
*Wesley Rocha é conselheiro titular da 2ª Seção do Carf, especialista em Planejamento Tributário pela Universidade de Brasília (UNB) e presidente da Associação dos Conselheiros do Carf Representantes dos Contribuintes (Aconcarf). Frederico Cattani é advogado sócio da Frederico Cattani & Raphael Di Tommaso Advogados Associados e mestre em ciências criminais.
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