Direito à educação: uma garantia para crianças trans?

A garantia de um espaço livre de violência para as pessoas trans representa mais um importante passo para o direito das crianças à educação/Pixabay
A garantia de um espaço livre de violência para as pessoas trans representa mais um importante passo para o direito das crianças à educação/Pixabay
É necessário que o ensino seja uma ferramenta de diminuição dos degraus sociais e econômicos existentes entre os diversos grupos.
Fecha de publicación: 31/05/2022

No último dia 11 de maio, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que a prefeitura da capital paulista inclua os homens trans na lei que institui o Programa de Distribuição de Absorventes Descartáveis e itens de higiene pessoal nas escolas municipais.

 

Sancionada em 2020, essa lei tem como objetivo a diminuição da evasão escolar durante o período menstrual, mas, de forma equivocada, trazia em seu texto que apenas “alunas” teriam direito ao acesso aos itens, excluindo, assim, os homens trans, ou seja, as pessoas estudantes que nasceram com o sexo biológico feminino (e, portanto, menstruam) e têm a identidade de gênero masculina (se reconhecem como homens).


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Segundo o relator da ação, desembargador Matheus Fontes do Tribunal de Justiça de São Paulo, a promoção do bem-estar e da saúde “não comporta discriminações orientadas por sexo”.

 

Vê-se que a decisão não está isolada. Os últimos meses e anos trouxeram muitas novidades no reconhecimento de direitos da comunidade trans – historicamente submetida a algumas das mais graves discriminações. Esses direitos foram promovidos pelo recente reconhecimento da aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans e travestis, pelo Protocolo do Conselho Nacional de Justiça para Julgamento pela perspectiva de Gênero (com menção expressa às violências institucionais sofridas no Judiciário por mulheres trans e travestis) e pelo provimento do CNJ que, desde 2018, permite a retificação de prenome e gênero diretamente nos cartórios, sem a necessidade de ação judicial ou tratamentos médicos.

 

Conhecer essas novidades e entender seu valor jurídico são passos importantes para o adequado exercício da cidadania, razão pela qual diversas organizações e movimentos sociais têm trabalhado na disseminação desses conteúdos, como parte de suas estratégias de advocacy. A Plataforma Taturana e o escritório TozziniFreire Advogados, por exemplo, lançaram recentemente uma Cartilha sobre o Direito das Crianças Trans à Educação, que também contou com a articulação de outras organizações.

 

O material compila os direitos presentes na legislação nacional e internacional e decisões judiciais e de organismos de proteção de direitos humanos, visando a orientar escolas, profissionais da educação e familiares sobre os direitos desses e dessas jovens no acesso à educação. A base do documento é o reconhecimento pela Organização Mundial de Saúde de crianças e adolescentes trans expressamente contemplados na categoria de incongruência de gênero (CID-11, HA60 e HA61).

 

A Convenção sobre os Direitos das Crianças reconhece o direito à educação e ao desenvolvimento da criança. Para tanto, estabelece que será prestada assistência adequada aos pais e aos representantes legais para o desempenho de suas funções no que tange à educação da criança e assegura a criação de instituições, instalações e serviços para o cuidado das crianças.

 

Determina, ainda, que toda criança (sem exceção) deverá ser protegida contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração. Seria redundante dizer que os direitos reconhecidos se estendem às crianças trans.

 

A Convenção é o instrumento de direitos humanos com o mais elevado grau de consenso internacional, sendo assinada por 196 países que, periodicamente, relatam as medidas adotadas para tornar efetivos os direitos reconhecidos na Convenção.

 

Na esfera internacional, os Princípios de Yogyakarta garantem, em seu Princípio 16, que “toda pessoa tem o direito à educação, sem discriminação por motivo de sua orientação sexual e identidade de gênero, e respeitando essas características”.

 

A Opinião Consultiva nº 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculante para o Brasil (Decreto nº 4.463/2002, com importância reiterada pela Recomendação nº 123/2022 do CNJ), afirma que as violações sofridas por pessoas trans “podem ter efeitos a nível individual, mas também a nível social, uma vez que as pessoas LGBTI que veem negado seu acesso aos direitos básicos como trabalho, saúde, educação e habitação vivem em situações de pobreza, privadas de qualquer oportunidade econômica”.

 

Os dados no Brasil, no entanto, caminham na contramão dos direitos declarados: estudos estimam que a evasão escolar de pessoas trans é de 82% antes mesmo da conclusão do ensino básico, com reflexos nos baixos índices de empregabilidade que assolam a comunidade. Tornam letra morta – ou apenas para inglês ver – o direito das crianças trans à vida digna e ao acesso à educação.


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É necessário que a educação seja uma ferramenta de diminuição dos degraus sociais e econômicos existentes entre os diversos grupos. Mas esse avanço exige que os ambientes escolares estejam preparados para acolher e assegurar o acesso à educação para todas as pessoas, ensinando os estudantes a contemplar e respeitar as diferenças, em vez de combatê-las.

 

A garantia de um espaço livre de violência para as pessoas trans representará mais um importante passo para que se alcance na prática o que na teoria se apresenta como consenso: o direito das crianças à educação.

 

*Clara Serva é sócia e Maria Paula Bonifácio é advogada na área de Empresas e Direitos Humanos do TozziniFreire Advogados.

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