Embates no STF durante crise da Covid-19 são uma queda de braço entre visões de mundo

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De um lado, a busca pela sobrevivência, segundo as leis do possível; de outro, o apego a paradigmas e abstrações ortodoxas.
Fecha de publicación: 21/04/2020
Etiquetas: Direito do Trabalho

A vida em tudo é dual. Tudo na natureza se manifesta em relação com o seu oposto. No velho provérbio popular, “tudo é faca de dois gumes”. E parece irretorquível que a dualidade natural da vida, quando mal compreendida, traz conflito e adversidade.

Eis que certo dia a emergência na saúde pública decorrente do Covid-19 levou ao Supremo Tribunal Federal a Medida Provisória (MP) 936/2020 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6363, um encontro de dois antagônicos socorristas que travam, em verdade, uma queda-de-braço entre visões de mundo, e não propriamente entre tratamentos e prognósticos. De um lado, a busca pela sobrevivência, segundo as leis do possível; de outro, o apego a paradigmas e abstrações ortodoxas.

No século XVIII, Rousseau, destacado expoente do Iluminismo, afirmou que “o homem nasce livre, e, em toda parte, encontra-se acorrentado”. No seu contexto, a assertiva questionava o motivo de o indivíduo estar aprisionado em um contrato social “dado”, “estabelecido” sem que da confecção de suas cláusulas tenha participado, vindo a traduzir no movimento revolucionário o desejo de ruptura das supostas amarras impostas por uma classe rica sobre uma pobre.

Inspirada na razão iluminista, a Carta Política de 1988 promete garantir indistintamente a todos um bem-estar social, carregando no seu código genético, para isso, comandos marxistas muito evidenciados na jurisprudência dos tribunais superiores, em especial do Tribunal Superior do Trabalho, institucionalizando assim uma eterna “luta de classes”, uma insuperável batalha entre mão-de-obra e capital, de modo a fazer crer ser necessária e salutar a ideia de intervenção do Estado na criação, na manutenção e na extinção de direitos e obrigações trabalhistas.

O ato normativo presidencial questionado na Corte máxima do país constitui um esforço que, mesmo sendo empreendido contra o fechamento em série de empresas, contra a demissão em massa de trabalhadores e para propiciar a assistência mínima em um momento caótico, precisa desatar não apenas os nós sanitários e econômicos causados pela pandemia, mas, o que é mais difícil, desfazer as pontes de concreto usinado entre as aspirações marxistas e o imaginário nacional.

O ministro Ricardo Lewandowski, juiz da batalha MP 936 versus ADI 6363, deferiu liminar para condicionar a validade da flexibilização do contrato de trabalho ao crivo sindical, onde o sindicato teria dez dias para promover uma negociação coletiva mais vantajosa para o trabalhador, quando então o acordo individual perderia validade. O Plenário, por maioria, no entanto, negou referendo à medida cautelar, indeferindo-a na última sexta-feira (17), retomando-se a vigência do texto normativo – subsistindo certa aflição e insegurança, haja vista que a decisão poderá ser modificada no julgamento definitivo da causa.

Para nós, cabe ao Supremo, como tribunal constitucional e última instância jurisdicional, atentar-se aos ditames máximos da Constituição sem perder de vista a lei do possível e a realidade socioeconômica do país. Afinal, é fato inconteste que, por inexistir bala de prata, as restrições sanitárias e impactos econômicos até agora observados reclamam, infelizmente, um remédio amargo a fim de atenuar ao máximo os já desastrosos efeitos da pandemia, cujo urgente tratamento exige maior dinamicidade e flexibilidade nas negociações entre empregador e empregado.

Em um momento tão peculiar, a anuência sindical como requisito de validade para cada um dos 2,5 milhões de acordos individuais já firmados no país com amparo na MP 936, surtiria mais efeito de eutanásia do que de socorro ao paciente, em mais uma demonstração de que, no caso, o apego à estética de paradigmas abstratos e ortodoxos possuiria, para ser exato, o condão apenas de gerar mais entraves burocráticos, a mitigação da segurança jurídica e o acirramento do conflito de interesses nas relações de trabalho, desestimulando a composição amigável entre os sujeitos do negócio jurídico e aumentando, ao fim e ao cabo, as demissões e o fechamento de empresas, com a trágica frustração tanto dos objetivos da MP 936 quanto daqueles imanentes ao ideário protecionista.

A rigor, a nação brasileira, pelo seu modelo constitucional adotado na Assembleia Constituinte de 1988, tornou-se refém de determinada visão político-ideológica, em especial nas relações trabalhistas, de um modo de pensar e agir reinante quase sem contraponto nos meios acadêmicos e na cultura jurídica, que ignora não ser possível tudo ter.

E ignorar tal constatação é ignorar a dualidade da vida, é acorrentar-se ao que não se pode ter, ao direito descabido e, portanto, ao sofrimento, ao conflito e à adversidade. Assim como dinheiro não nasce em árvore, emprego e salário não crescem em horta. Noutras palavras, a redução da produção no contexto das atuais restrições sanitárias equivale à redução e até eliminação da riqueza. E sem riqueza, não há emprego e nem salário.

É absolutamente necessário optar pelo possível, reconhecer que a Constituição Federal e a Consolidação das Leis do Trabalho prometeram tudo ao trabalhador, mesmo independentemente de contrapartida, e assim o amarrou na armadilha do paradigma binário, consistente no falso e ultrapassado antagonismo de forças do bem e do mal, do rico e do pobre, do empregado e do empregador, desvirtuando as dinâmicas sociais a própria organização do Estado.

E é assim que a pandemia do Covid-19 convoca todos a repensarem a vida, os conflitos e as soluções. Reprisando as sábias palavras do ministro Luis Roberto Barroso, “tem se falado que, depois da crise, haverá um novo normal. E se não voltássemos ao normal? E se fizéssemos diferente?”.

*Willer Tomaz é advogado sócio do Willer Tomaz Advogados Associados.

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