Em época de pandemia, tudo é controvertido. Estamos vivendo um momento em que incertezas se impõem e os receios são muitos. Embora hoje experimentemos um aparente arrefecimento da pandemia, mesmo esse fato é cercado de incertezas. Temos ainda um número elevado de mortes diárias e o fantasma das novas cepas do vírus a nos assombrar. Além disso, temos a lembrança do final de 2020 quando achávamos que tudo estava caminhando para a normalidade e, de repente, fomos atropelados por uma nova onda.
Se há incertezas, há também, e em um grau muito elevado, ansiedade pelo retorno às atividades normais. Ansiedade movida pela necessidade de contatos pessoais e impressão de normalidade para garantir um mínimo de sanidade mental. Nessas circunstâncias, tem se tornado comum que empresas planejem, alguns dizem que prematuramente, o seu retorno ao trabalho presencial. Se a hipótese é de retorno, estamos tratando aqui de empresas que estão trabalhado remotamente e, portanto, têm até aqui sobrevivido adotando essa modalidade de trabalho.
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A hipótese a ser tratada, então, é aquela de uma empresa que vem operando com seus colaboradores em regime de trabalho remoto há algum tempo, provavelmente desde março de 2020 e que agora resolve que irá retornar, total ou parcialmente, as atividades presenciais. Essa empresa determina, portanto, que seus empregados, a partir de determinada data, voltem integral ou parcialmente a comparecer à sua sede e a trabalhar presencialmente. As razões para essa decisão podem ser várias: percepção de que os riscos chegaram a um patamar aceitável, aumento dos casos de burnout e alienação das pessoas pelo trabalho remoto, perda de produtividade pelo esgarçamento do sistema de trabalho remoto etc. Mas as razões não importam tanto.
O fato relevante é que, se podem haver razões para uma empresa querer voltar a trabalhar presencialmente, naturalmente há também justos receios de seus colaboradores em vista dos riscos inerentes a esse retorno quando nem todos estão imunizados. As circunstâncias pessoais de cada colaborador definirão os níveis de risco e desconforto resultantes do retorno ao trabalho presencial. Apenas para exemplificar, imaginem o caso de um empregado que tem 50 anos, reside com sua mãe idosa e portadora de condição de saúde que a torna grupo de risco e que nesses quase um ano e meio de pandemia se manteve rigorosamente em quarentena, saindo apenas para o essencial e trabalhando sempre de sua residência. Imagine que esse empregado tenha sido agora informado que a partir de agosto sua empresa voltará a trabalhar em regime misto e que ele deve comparecer à sede da empresa três vezes por semana.
Não é necessário um nível de abstração elevado para entender que essa determinação pode causar enorme ansiedade e desconforto para esse empregado. Afinal, por muitos meses ele tomou todas as precauções, se manteve em quarentena e conseguiu passar incólume e proteger sua mãe de contaminação, vivendo as agruras de uma vida limitada pela pandemia e, agora, de uma hora para a outra, a empresa pede que ele retome às suas atividades presencialmente, use transporte público, se alimente em restaurantes e conviva com outros colegas de trabalho que podem não ter os mesmos cuidados que ele quanto aos riscos de contaminação. A isso se soma o fato de que ele tomou apenas a primeira dose da vacina, aguardando a segunda dose que será aplicada apenas em meados de setembro.
Considerando essa situação hipotética, o empregador não pode obrigar o empregado a voltar ao trabalho presencial antes de ele ou ela estar devidamente imunizado. A decisão e retomada, por alguns considerada prematura, é tomada pelo empregador, com base em suas razões. Muito das vezes ela decorre de uma pesquisa de opinião que reflete a vontade de retorno à atividade presencial manifestada por uma parcela grande dos empregados, mas a decisão é do empregador, sem que a opinião individual de cada empregado seja colhida, até porque isso em alguns casos pode ser impossível. Assim, temos aqui uma determinação patronal, decorrente do seu poder de direção e mando no contrato de trabalho. Sendo uma determinação unilateral do empregador, ela deve ser avaliada sob a ótica da sua legalidade, ou, em outras palavras, é importante perguntar se essa ordem se está ou não dentro dos limites do poder diretivo do empregador.
Antes de mais nada, deve ser lembrado que o empregador tem o dever de fornecer ao empregado um ambiente hígido de trabalho, sem riscos que não sejam devidamente mapeados e tratados através de medidas mitigadoras (através de mecanismos de proteção e segurança do trabalho, como EPIs etc.), quando devidamente identificados.
No caso do risco de ser infectado por um vírus em pandemia é um risco que pode ser mitigado pelo uso de máscaras, álcool, distanciamento e principalmente pela vacinação. Como a vacinação é a forma mais eficiente de evitar a contaminação pelo vírus, a determinação patronal de retomada do trabalho presencial antes de completado o ciclo de vacinação com duas doses implica em assumir riscos, riscos para os empregados aos quais se destina essa determinação. Assim sendo, essa determinação patrona pode ser qualificada como uma violação do seu dever de proporcionar um ambiente hígido para seus empregados ou, em outras palavras, não os colocar em risco.
Isso se torna especialmente delicado em uma situação em que a empresa vem operando sem maiores percalços de forma não presencial e não há um fato grave e determinante que legitime o retorno imediato ao trabalho presencial. Essa determinação pode, portanto, ser qualificada como carente de motivação justa, entendendo-se por justa a motivação que atende a uma demanda real do empregador, mas também dos empregados individualmente e não apenas ao eventual resultado de uma pesquisa de opinião ou ao desejo do empregador de retorno a uma forma de trabalho ainda incompatível com a realidade da pandemia.
Pode o empregado que não foi imunizado com a segunda dose da vacina se recusar a retornar ao trabalho presencial se assim for determinado pelo empregador, especialmente se o seu trabalho vem sendo realizado sem maiores problemas remotamente?
Essa recusa se qualifica como justa na medida em que há incertezas quanto à possibilidade de ser contaminado no transporte público, em outros ambientes públicos que passe a frequentar e mesmo no ambiente presencial de trabalho onde dividirá o espaço com colegas que podem ter convicções e hábitos distintos aos seus quanto a como se comportar na pandemia. E por ser justa essa recusa, o empregado não poderá ser repreendido ou obrigado a comparecer à sede da empresa.
Mas como então contemplar o desejo de muitos ou mesmo de alguns de retornar ao trabalho presencial? Como atender ao que parece ser uma demanda urgente desses empregados que alegam estarem surtando presos em casa? A solução que parece mais adequada e menos arriscada do ponto de vista legal é que a decisão de retorno ao trabalho em regime presencial seja voluntaria e não mandatória, de modo que aqueles que se sintam inseguros com esse retorno possam continuar trabalhando de suas residências pelo menos até que sejam imunizados com a segunda dose e que a situação da pandemia em sua região se estabilize. Com isso, eliminam-se as possibilidades de conflitos decorrentes de justas recusas por parte dos empregados em cumprir a ordem de retorno ao trabalho presencial.
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Além do mais, se a empresa optar pelo retorno ao trabalho presencial, todas as medidas mitigadoras devem ser adotadas. O ambiente de trabalho deve ser adaptado para que se limite a aglomeração, obrigue o uso de máscaras e de álcool gel que deve ser disponível em abundância e seja limitado o número de pessoas que comparecerá ao local de trabalho em cada dia, estabelecendo sistemas de revezamento se necessário. A possibilidade de retorno opcional conjugada com medidas de mitigação bem implementadas parece ser a solução mais adequada para endereçar as ansiedades e os medos que naturalmente emergem em tempos de tantas incertezas.
*Luiz Guilherme Migliora é sócio da área trabalhista do Veirano Advogados.
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