O iminente lançamento do Real digital pelo Banco Central do Brasil, o Bacen, é importante avanço nas discussões sobre digitalização, aumento da competição e da capacidade de inovação na economia brasileira. Por se tratar de grande novidade, é natural que perguntemos a diferença da moeda digital estatal para moedas digitais privadas, como o Bitcoin, e o que há de novo no Real digital em relação ao Real tradicional.
Em primeiro lugar, a grande diferença de uma moeda digital oficial, como o Real digital, para as moedas digitais privadas é que estas últimas não conseguem exercer todas as funções para as quais a moeda oficial foi criada. O Real digital vai guardar todas as características de uma moeda oficial, da mesma forma que o Real físico hoje. Essas características não estão presentes em nenhuma das moedas digitais privadas.
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Qualquer moeda de Estado precisa cumprir três tarefas: ser unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor.
Ser unidade de conta é característica que permite mostrar quanto custa determinado bem usando certa moeda. Por exemplo, no supermercado um pacote de café custa dez reais – nesse caso, o Real está exercendo sua função de unidade de conta. Moedas digitais privadas podem exercer essa função: embora seja muito trabalhoso, nada impede que o supermercado marque os preços em Bitcoin, por exemplo, ao lado do preço em Real. O Real digital também terá essa função.
A diferença começa a ficar mais clara na função de meio de pagamento. Por lei, moedas oficiais possuem “curso legal”, ou seja, elas obrigam as pessoas a aceitar pagamentos. Ninguém pode rejeitar receber pagamento com moeda oficial. Se o cidadão quiser pagar o pacote de café usando Real em papel-moeda ou com cartão de crédito, o supermercado não vai poder rejeitar o pagamento alegando que não recebe Real. O Real digital também vai ter curso legal, isto é, no supermercado a pessoa vai poder escolher pagar em Real físico ou em Real digital e o estabelecimento terá que aceitar ambos.
Obviamente, o mesmo não acontece com as moedas digitais privadas: se uma pessoa for ao supermercado e quiser pagar a conta em Bitcoin, o estabelecimento não é obrigado por lei a aceitar seu pagamento. Somente moedas emitidas por Estados têm curso legal.
Por fim, ainda mais problemática é a função de reserva de valor para moedas digitais. Com a exceção de períodos de hiperinflação, moedas oficiais como o Real guardam o mesmo valor ao longo do tempo: se uma pessoa receber cem reais hoje, sabe que daqui a um mês esse dinheiro ainda vale cem reais. O Real digital funcionará da mesma forma: cem reais digitais hoje devem permanecer valendo cem reais digitais ao longo do tempo.
Moedas digitais privadas são extremamente voláteis e possuem enormes alterações de valor, mesmo dentro de um único dia. Isso ocorre porque quem garante a estabilidade do valor da moeda oficial – física ou digital – é o Estado. Não existe quem possa garantir a estabilidade do valor de moedas digitais privadas.
O Banco Central do Brasil ainda não deixou claro qual mecanismo será usado para determinar e estabilizar o valor do Real digital, embora exista mais de uma proposta viável. Uma delas é vincular o valor da moeda digital à moeda física. Neste caso, uma unidade de Real digital sempre valeria uma unidade de Real físico e o valor do Real digital teria a mesma volatilidade do Real físico. Se, por exemplo, o dólar encarecesse com relação ao real físico, ele encareceria na mesma proporção com relação ao Real digital.
Em segundo lugar, a principal diferença entre a moeda digital e a moeda tradicional está na sua rastreabilidade. Cada unidade de qualquer moeda digital possui em seu código uma “marca” única. Essa marca guarda a informação de quem foram os proprietários da moeda. Por isso, é possível saber exatamente todo o histórico de propriedade da moeda. Ou seja, é possível rastrear quem foram todos os donos daquela unidade específica de moeda desde o momento da sua emissão.
Isso facilita saber, por exemplo, quais caminhos a moeda percorreu em caso de lavagem de dinheiro. Todos os intermediários de transações que estejam sendo investigadas podem ser identificados, facilitando o trabalho das autoridades em descobrir possíveis tentativas de legalização de dinheiro de origem ilícita.
Risco à privacidade
No entanto, também é importante ressaltar que essa característica facilita a violação da privacidade individual e do sigilo das transações bancárias. Por isso, ela pode ser tanto uma ferramenta importante de combate ao crime quanto uma ferramenta de supervisão indevida do Estado sobre cidadãos.
Porque o histórico de propriedade das moedas digitais é rastreável, em tese o Estado passa a ter o poder de conhecer todas as transações em Real digital realizadas por empresas e indivíduos. O lado ruim desse poder é que, caso não seja bem exercido e controlado, a vida financeira das pessoas e empresas poderá ser acessada a qualquer momento pelo Estado.
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Por isso, é absolutamente fundamental que o desenho do Real digital imponha, desde a sua concepção, limites às condições sob as quais o Estado possa ter acesso aos dados de pessoas físicas e jurídicas. Para isso já existe a legislação de sigilo bancário e de proteção de dados pessoais, como a recentemente aprovada LGPD. As investigações criminais devem se ater às autorizações judiciais para acessar o histórico de transações do Real digital.
Por fim, a sociedade civil precisa se manter atenta e denunciar casos em que o Executivo, Legislativo e Judiciário ultrapassem as fronteiras legais e violem os direitos do indivíduo.
*Theófilo Miguel de Aquino, consultor de relações governamentais do ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), é advogado, Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP.
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