As fake News e a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet

Projeto prevê a instituição do “Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet”/Pixabay
Projeto prevê a instituição do “Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet”/Pixabay
Norma impõe uma série de obrigações a provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada.
Fecha de publicación: 29/06/2020
Etiquetas: Brasil

O uso dos meios de comunicação para disseminar o que hoje chamamos de fake news não é fenômeno recente. Na verdade, é algo documentado ao longo da história da civilização, notadamente a partir da Idade Média.

Da publicação da Anedocta, de Procópio, no século VI, descrevendo o imperador bizantino Justiniano e a imperatriz Theodora de forma bem diferente daquela divulgada nos escritos anteriores do mesmo historiador, à odiosa campanha de ofensa aos judeus promovida pelo Ministério da Propaganda alemão, nas décadas de 1930 e 1940, são incontáveis os registros de disseminação de informações falsas, truncadas ou deturpadas pelos meios de comunicação de massa.

A popularização da internet comercial, na virada do século XX para o XXI, alçou a disseminação da informação a outro patamar. Bilhões de pessoas conectadas à rede podem, de forma simples, rápida e barata, gerar e propagar informação com alcance intercontinental. Os benefícios proporcionados à sociedade por esse avanço tecnológico são imensuráveis, na educação, na economia, na cultura, na política e em várias outras atividades e ciências humanas.

Entretanto, como ocorre com outras tecnologias, há também os que (intencionalmente ou não) fazem mau uso da internet, inclusive para disseminar informações falsas, truncadas e deturpadas. Somada a uma parcela da audiência que consome ferozmente esse tipo de conteúdo, a veiculação de fake news proliferou-se na Internet, chamando a atenção de autoridades ao redor do mundo.

No Brasil, enquanto um inquérito sobre o tema tramita no Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional dedica-se ao assunto por meio de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito e da tentativa de criação de uma “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. De iniciativa do Senado, o Projeto de Lei nº 2.630/2020 é o que avança mais rapidamente nessa direção – em meio a seguidas mudanças no texto e tentativas apressadas de votação.

Em sua versão mais recente – que provavelmente passará por novas alterações até a votação prevista para esta terça-feira, 30 de junho, – o Projeto de Lei nº 2.630/2020 impõe uma série de obrigações a provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, cuja inobservância deve ensejar a responsabilização cível e administrativa dessas empresas.

São obrigações como a proibição do funcionamento de contas inautênticas e contas automatizadas não identificadas como tal, a confirmação da identidade de usuários, inclusive por meio da apresentação de documento de identidade, a guarda de registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa, a exclusão de conteúdo ou contas de usuários de forma imediata e independentemente de ordem judicial, nos casos da prática de crime de ação penal pública incondicionada, a adoção de um procedimento de moderação antes de removerem conteúdo ou contas de usuários que violem seus termos de uso, a manutenção de sede e nomeação de representantes legais no território brasileiro etc.

O Projeto de Lei nº 2.630/2020 ainda prevê a instituição, pelo Congresso Nacional, do chamado “Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet”, um órgão que terá entre outras atribuições a elaboração e sugestão de código de conduta para redes sociais e serviços de mensageria privada, a avaliação da adequação das políticas de uso adotadas pelos provedores e dos seus procedimentos de moderação aplicáveis em caso de remoção de conteúdo e contas de usuários.

Muito já se comentou sobre as impropriedades jurídicas do Projeto de Lei nº 2.630/2020. De fato, a restrição desproporcional de direitos fundamentais como a liberdade de manifestação do pensamento (incluindo a liberdade de informação) e a inviolabilidade da privacidade torna o texto do Projeto de Lei nº 2.630/2020 incompatível com a ordem jurídico-constitucional vigente – como manifestado por diferentes entidades interessadas no tema.

A par da sua potencial inconstitucionalidade material – e sem prejuízo das análises realizadas com esse enfoque –, o Projeto de Lei nº 2.630/2020 merece atenção também pelo que representa no contexto de um Estado Democrático de Direito.

A regulamentação do exercício da manifestação do pensamento em meios de comunicação de massa não é algo inédito na história brasileira. Nosso ordenamento jurídico já dispôs de lei que, sob a nobre rubrica de assegurar a livre manifestação do pensamento e da informação, “sem dependência de censura”, estabeleceu um regime diferenciado de responsabilização aplicável àqueles que publicassem notícias falsas, truncadas ou deturbadas, entre outras condutas consideradas abusivas.

E o Supremo Tribunal Federal houve por considerar a tal lei – por todos conhecida como “Lei de Imprensa” – integralmente incompatível e não recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Prevaleceu, no histórico julgamento do Supremo, o entendimento pela vedação constitucional à interferência do Estado no núcleo essencial da liberdade de informação jornalística, inclusive por meio de regulamentação legal.

Sim, há diferenças significativas entre o texto projetado para a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e o conteúdo da Lei de Imprensa. Algumas dessas diferenças, contudo, tornam ainda mais alarmante a iniciativa que tramita no Senado. Um exemplo: a Lei de Imprensa previa a responsabilização dos veículos de comunicação pelo conteúdo que eles próprios criavam e publicavam; o Projeto de Lei nº 2.630/2020, por seu turno, institui obrigações e sanções não para aqueles que criam e publicam o conteúdo, mas para empresas que fornecem as aplicações de Internet usadas para a veiculação.

Há, também, semelhanças consideráveis entre os dois diplomas – e a mais preocupante não está expressa em nenhum dos textos, mas implícita no propósito subjacente à sua concepção. Assim como a história provou ter se passado em relação à Lei de Imprensa, há sinais importantes de que (guardadas as devidas proporções) também o Projeto de Lei nº 2.630/2020 traduz um impulso de autopreservação do poder político, uma investida pela criação de exigências para a livre manifestação do pensamento, motivada por interesse que não é o da coletividade.

Em um e noutro caso, o preço cobrado é muito alto: coloca-se em jogo um direito fundamental que serve de instrumento para o povo fiscalizar o modo de agir daqueles que estão de plantão no poder e que constitui, por essa razão, elemento indispensável para a efetivação do regime democrático.

Não será repetindo graves erros históricos que se chegará a uma solução legislativa adequada para coibir a disseminação de fake news. Por sua relevância, o tema merece e deve ser objeto da atenção do legislador. Mas o mínimo que se espera em uma proposta legislativa dessa natureza é a legítima consideração dos direitos fundamentais em jogo, do interesse da coletividade e da arquitetura da Internet. Quanto a isso, o Projeto de Lei nº 2.630/2020 falha peremptoriamente.

*Ciro Torres Freitas é sócio de Tecnologia de Pinheiro Neto Advogados.

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