Neste mês, ao redor do mundo, incontáveis eventos relativos ao dia internacional da mulher têm lugar.
Das mulheres. Porque, para se falar em dia da mulher, é preciso entender de que mulher se está falando. Ou sobre as quais não se fala.
Porque ser mulher, entre os avanços e retrocessos, na hora em que a balança para de pender para um lado ou o outro – se é que para –, é, muitas vezes, ao fim do dia, ter pouco a comemorar, o que restou bem destacado nos diversos encontros majoritariamente femininos ocorridos em atenção à data.
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A própria instituição do dia oito de março como dia internacional da mulher, em 1975, serve como lembrete anual, a todas as mulheres, das mais às menos invisibilizadas, de tudo o que veio antes da consagração da data: as quinze mil trabalhadoras russas que tomaram as ruas de São Petersburgo, marchando por “pão e paz”, em 1917.
O incêndio de uma fábrica em Nova York, no ano de 1911, que vitimou mais de cem mulheres, a maioria jovens imigrantes, com idades entre 13 e 23 anos, ceifando suas vidas de modo trágico; o movimento sufragista feminino, por meio do qual as mulheres perseguiam o direito de votar e serem votadas, e, com isso, poderem se inserir no processo político democrático; entre outras ocasiões e fatos atrelados a lutas, silenciamentos, mortes bárbaras e resistência.
Louvar “a” mulher como universalidade demanda (querer) enxergar e entender feminismos plurais: negras, indígenas, travestis, transexuais, refugiadas e imigrantes, para ficar em alguns determinados grupos, são contempladas quando se pensa no oito de março? Que políticas públicas (quando existentes), propagandas televisivas, padrões estéticos e afetos ligados a solidariedade e empatia não têm como núcleo a mulher branca, cisgênera, heterossexual?
O Brasil, quinto maior país do planeta em extensão territorial, está longe de ser a quinta maior democracia mundial. O espírito de uma colonização fundada em genocídio indígena e escravidão de pessoas negras assombra o oito de março de 2022, assim como os oito de março passados e futuros: tal qual os fantasmas de Charles Dickens, com a diferença de que o nosso presente se confunde com um eterno pretérito imperfeito.
Ainda somos o país que mais assassina transexuais em todo o planeta; em que 0,56% dos homens brancos concentram 15,3% da renda nacional, enquanto as mulheres negras têm acesso a 14,2% dessa renda, não obstante representem 26% da população pátria; e onde as indígenas denunciam, no Congresso Nacional, violações rotineiras dos seus territórios e corpos, sem que sejam vistos avanços concretos em nenhum aspecto.
A pergunta que fica sem resposta possivelmente não é “até quando?”, pois não se vislumbra um horizonte próximo. O questionamento passa pelo “como?”: como fazer com que a sociedade patriarcal, machista, misógina e violenta enxergue a mulher-indivíduo, aquela que não se divide, um ser, visto de maneira desobjetificada, não servil, distante da instrumentalização, digno de compaixão, cuja existência tem, no mínimo, o mesmo valor da vida de cada homem que pratica feminicídio?
Numa democracia, as vias institucionais deveriam ser um caminho seguro para a reconstrução de um imaginário social em que homens e mulheres estivessem, efetivamente, nos mesmos patamares – a igualdade que é a centralidade das várias ondas de diversos feminismos. Tão aparentemente simples que a pauta feminista precisa ser transmutada em outros assuntos, a fim de que “feminista” possa assumir tom de insulto e a paridade continue sendo inalcançável.
No estado democrático de direito brasileiro, uma deputada da maior assembleia legislativa do país foi assediada sexualmente e tocada de modo inoportuno por um colega de Casa, igualmente deputado, sem o seu consentimento, sob os olhares de todos os demais presentes. Outro membro da mesma assembleia, escondido atrás da causa humanitária, pronunciou-se de maneira leviana e desumanizante acerca das mulheres com que cruzou em plena zona de guerra: atribuiu-lhes um desvalor moral decorrente da periclitância em que se encontravam.
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Esses dois homens exemplificam um pensamento sistêmico, perpetuado desde, pelo menos, o mito Hobbesiano do estado de natureza, em que o indivíduo fundamental, solitário e autônomo, apreende-se, é representado por um homem adulto, do sexo masculino, preenchido por autoamor e sem necessidade do outro. A figura fundante aniquila a alteridade desde o pacto natural, corroborando para que não se enxergue a mulher; quando muito, através dela.
Em oito de março de 2022, Lílian Sais nos lembrou uma das razões pelas quais não queremos mais ganhar flores:
“(...)
nunca entendi bem a tradição
de matar flores e entregá-las
a mulheres talvez realmente venha
da tradição de matar mulheres
e entregá-las às flores
cobri-las de flores
dentro do
caixão”
*Bianca Dias é sócia do Serur Advogados.
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