A figura da tentativa na Lei Anticorrupção Empresarial

Somente é admissível a punição da tentativa quando o próprio tipo do ato lesivo descreve uma conduta sob a forma tentada/Canva
Somente é admissível a punição da tentativa quando o próprio tipo do ato lesivo descreve uma conduta sob a forma tentada/Canva
É possível a punição da pessoa jurídica pela prática de ato lesivo tentado?
Fecha de publicación: 07/02/2022

A imputação, cada vez mais constante, de condutas empresariais como atos lesivos, isto é, como ilícitos previstos na Lei Anticorrupção Empresarial, tem demandado o aprofundamento de discussões até então bastante embrionárias. Neste sentido, uma questão tem recorrentemente surgido em processos administrativos de responsabilização: é possível a punição da pessoa jurídica, nos termos da Lei nº 12.846/2013, pela prática de ato lesivo tentado? 

Para a obtenção da resposta, é imprescindível ter em mente que a Lei Anticorrupção Empresarial se insere no contexto do denominado Direito Administrativo Sancionador, o que a vincula, no momento de sua interpretação e aplicação, a uma série de princípios e regras constitucionais que conformam o jus puniendi estatal. 

Com efeito, entre esses princípios basilares, o da legalidade assume feição da maior relevância. Dele decorre que apenas condutas legal e previamente tipificadas como infrações podem ser sancionadas pelo Poder Público, o que o revela como verdadeiro meio de contenção do arbítrio estatal – uma das grandes conquistas civilizatórias do Estado de Direito Democrático. 


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Em suas últimas consequências, o princípio da legalidade traz consigo a impossibilidade da utilização de interpretação extensiva ou de analogia in malam partem na aplicação das normas que descrevem condutas ilícitas (não só em matéria penal, mas também administrativa), a impedir que elas sejam hermeneuticamente ampliadas. Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça por diversas vezes, como se observa, por todos, nos julgamentos do REsp 1.216.190/RS, rel. ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, em 02/12/2010, e do AgInt no REsp 1.643.337/MG, rel. ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, em 19/04/2018. 

No Direito Penal, ramo em que a punição da tentativa já é bem delineada, a adequação típica de um crime tentado ocorre, em regra, pela dita subordinação mediata, ampliada ou por extensão, operada por força do que dispõe o artigo 14, II, do Código Penal.  

Em outros termos, quando se está diante da tentativa de determinado crime, a conduta humana não se enquadra direta e exclusivamente no respectivo tipo penal, exigindo-se, para o reconhecimento da tipicidade do fato, a intermediação dessa norma de extensão. 

Daí que, então, a denúncia por roubo tentado imputa expressamente ao denunciado a prática de infração do artigo 157 c.c. o artigo 14, II, ambos do Código Penal. Sem o intermédio do artigo 14, II, não haveria o adequado enquadramento dos fatos na norma proibitiva, o que tornaria, portanto, atípica a conduta tentada. 

Na perspectiva das infrações administrativas, diante das imposições que decorrem do princípio da legalidade, atinge-se invariavelmente a mesma conclusão: a tentativa só pode ser punida se houver previsão legal, seja diretamente no tipo, ao tipificar uma conduta de “tentar fazer”, seja por meio de uma norma de extensão.  

Colocando-se essas premissas sob a perspectiva da questão levantada, nota-se que a Lei Anticorrupção Empresarial não dispõe de uma norma de extensão geral, que, intermediando a subsunção, permita o sancionamento da forma tentada dos atos lesivos previstos no artigo 5º, como faz o artigo 14, II, do Código Penal.  

Nesta esteira, deve-se destacar que o inciso III do artigo 7º da Lei Anticorrupção Empresarial, que dispõe que “a consumação ou não da infração” deverá ser levada em consideração na aplicação das sanções, não viabiliza a punição do ato lesivo tentado.  

Isso porque tal regramento, próprio para a dosimetria das penalidades em vista do princípio da proporcionalidade, está previsto na legislação apenas para as hipóteses em que a tentativa vem, ao lado da consumação, expressamente tipificada como ato lesivo, como acontece, por exemplo, na conduta de “procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo”, estatuída na alínea “c” do inciso IV do artigo 5º do citado Diploma Legal. 

Aliás, é oportuno rememorar, neste ponto, o princípio secular de interpretação jurídica segundo o qual a lei não contém palavras inúteis. A tipificação da conduta “procurar afastar” confirma categoricamente que, quando assim pretendeu, a Lei Anticorrupção Empresarial expressamente previu, no próprio tipo, a possibilidade de sancionamento da forma tentada. 


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O exercício do poder punitivo no âmbito do processo administrativo de responsabilização reclama observância à legalidade estrita, razão pela qual, na aplicação da norma, é inadmissível que se ampliem as hipóteses ilícitas previstas no artigo 5º, inclusive para abarcar suas modalidades tentadas. 

Em outras palavras, diante da inexistência de uma norma de extensão na Lei nº 12.846/2013 e da impossibilidade de interpretação extensiva sob a ótica do Direito Administrativo Sancionador, somente é admissível a punição da tentativa quando o próprio tipo do ato lesivo descreve uma conduta sob a forma tentada. 

Em síntese, portanto, a partir da conjugação dos elementos hermenêuticos comuns ao Direito Punitivo, responde-se à questão suscitada: não é possível a responsabilização da pessoa jurídica pela mera tentativa de ato lesivo, exceto no aludido caso do artigo 5º, IV, “c”, da Lei nº 12.846/2013. 

*Marcelo Zenkner e Gabriel Ene Garcia são, respectivamente, sócio e advogado na área de direito administrativo e projetos governamentais de TozziniFreire Advogados.

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