Vivemos momento sem igual na história contemporânea. Uma terceira guerra mundial, em que o planeta se alia contra um inimigo invisível. A assimetria informacional acerca do poder deste inimigo é o desafio que se coloca. Qual seria seu poder de fogo, de folego e sua velocidade? E ainda mais incerto seria o efeito colateral deste combate.
Eis o dilema, portanto. Combatemos um inimigo invisível e nosso poder de fogo gerará efeitos colaterais proporcionais ao armamento empregado. Em outras palavras mais adequadas à nossa presente realidade, a questão que se cogita é de difícil ponderação: não se trata da escolha de vidas ou empregos, como ousam simplificar alguns, mas da exata medida de seu equilíbrio. Fato é que medidas mitigadoras destes efeitos econômicos colaterais são inevitáveis, e os pacotes anunciados se multiplicam dia a dia em todos os cantos do mundo.
Medidas trabalhistas nunca anteriormente cogitadas, implicando perdas de receita do trabalhador em prol da preservação de empregos; medidas de diferimento de pagamentos de impostos variados, visando-se canalizar, novamente, recursos à proteção da mão de obra; teses variadas de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, visando a preservação destas mesmas relações em patamares outros de mais valia.
Neste cenário é que se deve cogitar de um papel mais flexível do direito concorrencial frente às situações de momento. Este ramo do direito, que via de regra se propõe à preservação de um equilíbrio de forças competitivas segundo a perspectiva do agente inovador e mais eficiente, bem como à reprimenda a quaisquer tipos de abusos cometidos por agentes econômicos com poder de mercado, parece, numa primeira visão, não se permitir a decisões de exceção.
Vale recordar que há muitos de nós que criticam, há tempos, a importação e tupiniquização de sistemas estrangeiros como a regra per se, ou seu mais próximo representante no Brasil: as condutas por objeto.
Estas, que prescindem de análise de efeitos e seriam, supostamente, contrárias ao princípios do artigo 173, § 4º da Constituição Federal - reprimenda aos abusos de poder econômico - não permitem sequer o debate acerca de eventual eficiência que tais acordos possam oportunamente gerar.
Mas o momento mostra a irracionalidade do padrão elegido. E mais, mostra que até mesmo as autoridades concordam que condutas por objeto não seriam estanques como se pretende reiteradamente fazer crer. Não há qualquer presunção absoluta. Há sim situações em que cooperações concorrencialmente restritivas entre concorrentes podem perseguir outros ideais ou valores que façam mais sentido à preservação do sistema capitalista em determinado momento da história.
Portanto, a questão que se coloca vem no sentido de se permitir ao direito concorrencial a consideração de situações sui generis que tragam outros tipos de benefícios à sociedade.
São diversas as perguntas que surgem neste momento, via de regra oriundas do empresariado criativo para soluções de crise, como a viabilidade de utilização conjunta de uma mesma rede de distribuição de produtos, que pressupõe acesso a informações sensíveis dos concorrentes; a limitação de oferta de serviços ou produtos para adequação racional da produção frente a uma nova curva de demanda; o compartilhamento ou prestação conjunta de serviços de forma a otimizar os recursos das empresas; e a negociação de compras conjuntas de forma a equilibrar eventuais forças competitivas e poder de barganhas assimétricos ocasionados por uma situação de momento.
As respostas de diversas autoridades no mundo a algumas destas questões têm variado em diversos sentidos. Algumas têm promovido isenções de bloco para aplicação de leis concorrenciais a determinados setores, e por determinado espaço de tempo, de forma a permitir arranjos variados ou trocas de informações entre concorrentes.
Neste sentido a autoridade Norueguesa determinou uma concessão ao setor de transportes de três meses de exceção à proibição de acordo anticompetitivos. Segundo a autoridade, esta exceção tornará possível a manutenção do setor de transportes de passageiros e mercadorias naquele país, garantindo à população acesso necessário a serviços e tais mercadorias.
Cabe notar, como exemplo, que o setor de transportes é dos mais afetados pela atual crise, em especial a aviação comercial. Não bastasse o fechamento das fronteiras e cancelamento dos voos, sem perspectivas de reabertura, o setor sofre ainda com o derretimento de suas ações nas bolsas de valores de todo o mundo e uma disparada do dólar no Brasil.
Algumas medidas têm sido consideradas para a sobrevivência destas empresas, como redução de tributos sobre querosene de aviação, leasing, folha de funcionários e tarifas; novas linhas de credito para capital de giro, diferimento de pagamento de impostos; regras diferenciadas de devolução de passagens, entre outros.
Sob o ponto de vista regulatório, algumas medidas também têm sido tomadas em outras regiões. O Parlamento Europeu aprovou uma suspensão temporária às regras de slots em aeroportos europeus até 24 de outubro. Espera-se agora que a proposta retorne aos Estados-Membros para aprovação formal, após o qual as medidas entrarão em vigor, uma vez publicada no Diário Oficial da União Europeia.
Ainda na Europa, a Comissão recentemente oficiou uma associação de varejistas – Eurocommerce – questionando que tipo de isenções o setor necessitaria, e de quais reguladores, bem como que tipo de informações seriam necessárias compartilharem entre si, para a suficiência de fornecimentos.
A Comissão reagiu às declarações do Eurocommerce de que governos e reguladores deveriam permitir cooperação entre os varejistas para garantia de fornecimentos e entregas de produtos aos mais vulneráveis, através do arrefecimento das leis concorrenciais.
Por outro lado, oportunismos são esperados nestas situações, razão pela qual diversas autoridades têm reforçado sua presença e supervisão para combater quebras de regras concorrenciais em virtude da utilização de argumentos de situação de emergência relacionado à Covid-19.
O Departamento de Justiça e a Comissão Federal de Comércio norte-americanos emitiram um guia de cooperação para o combate à pandemia, o qual sugere que empresas do ramo de saúde talvez precisem trabalhar juntas para atuação combinada, ou mesmo combinar, de maneira temporária, produção e logística de distribuição para fornecimento de medicamentos e equipamentos relacionados à doença.
As duas agências prometem ainda resolver quaisquer pedidos de cooperação dentro do prazo de sete dias do recebimento de todas as informações necessárias à análise. Defendem ainda que estes tipos de esforços, limitados na sua duração e necessários para assistirem pacientes, consumidores e comunidades afetadas pela pandemia, talvez sejam uma resposta necessária à garantia de fornecimento de produtos indispensáveis. Mas, da mesma forma, deixam igualmente claro que oportunismos para subversão das regras de concorrência seriam disciplinados.
Neste mesmo sentido se manifestou o governo alemão, que se disse pronto para adaptar algumas das restrições concorrenciais que poderiam evitar desabastecimento de alimentos, sem de fato se alterar a legislação. Entre as restrições que poderiam ser relevadas estaria uma cooperação mais próxima entre produtores e varejistas.
Segundo o porta voz da autoridade, não haveria necessidade de alteração das leis visto que as autoridades possuem ferramentas necessárias para uma flexibilização na aplicação das normas.
Já no Brasil, a postura do Cade até o presente momento tem sido de enfrentar a pandemia com a manutenção do ritmo de trabalho da entidade, logicamente adotando-se todas as cautelas de prevenção da doença, com a adoção de trabalhos home-office e reuniões e sessões realizadas virtualmente.
E na linha de tentar se fazer presente e atuante, a autoridade brasileira tem questionado ações de privados e participado de propostas de ação do próprio governo. Assim, oficiou, até o presente momento, cerca de 80 empresas do setor de saúde, tais como hospitais, laboratórios, farmácias, distribuidores e fabricantes de máscaras cirúrgicas, álcool em gel, fabricantes de medicamentos para tratamento dos sintomas do Covid-19, entre outros, solicitando-os para apresentarem notas fiscais emitidas de alguns produtos.
É notório que oportunismos existem não somente do lado das empresas públicas ou privadas, mas ainda do lado do próprio governo – especialmente o executivo e o legislativo.
Ainda mais quando se cumulam à anos eleitorais, momentos de crise são propícios para projetos de lei oportunistas que pouco benefício traz à mitigação de efeitos da crise, senão por gerar seu aprofundamento ou pelo menos maior insegurança jurídica, sem mencionar as avalanches de ações de inconstitucionalidade ou ilegalidade da medida.
Neste sentido, os órgãos de defesa da concorrência brasileiro – não somente o Cade, mas ainda a SEAE - devem estar atentos a tais oportunismos, como é o caso de propostas de legislação recentes que dispõem sobre congelamento dos preços ou mesmo sobre a suspensão de regras concorrências neste período. O Cade, neste sentido, tem sido solicitado a comentar algumas destas proposta pelo próprio Senado.
E no tocante à eventual flexibilização na aplicação de regras concorrenciais – e não suspensão da sua aplicabilidade de forma geral e irrestrita – apesar de o Cade não ter ainda se manifestado formalmente sobre o assunto, certamente o fara, em linha com as melhores práticas e mais avançadas autoridades globais, tão logo provocado e deparado com as alternativas.
Vale recordar que, em meio à crise dos caminhoneiros no ano passado, distribuidores de combustíveis apresentaram ao Cade petição com protocolo de crise de abastecimento celebrado, com o objetivo de estabelecerem regras para uma cooperação logística mútua.
Pelo acordo, as empresas passariam a operar em conjunto para otimizar o armazenamento, transporte e distribuição de produtos combustíveis líquidos e de aviação, com o fim único de assegurar a normalização do abastecimento de combustíveis de autoridades e da sociedade civil.
O documento tinha como objetivo a proposição de algumas medidas, de forma a agilizar a regularização na oferta de combustíveis após o término das manifestações realizadas pelos caminhoneiros. No dia seguinte ao protocolo da ação, a SG emitiu despacho por meio do qual se manifestou favorável ao acordo no momento de crise e, segundo a boa-fé das signatárias, desde que efetivamente cumprido nos exatos termos propostos.
No mesmo dia, o Presidente do Cade encaminhou o feito ressaltando que, diante do contexto social e econômico, haveria necessidade de convocação de sessão extraordinária para dar ciência da petição e abrir deliberação no Plenário.
Submeteu, assim, a proposta para conhecimento, informando aos interessados que as medidas elencadas não continham indícios de prática anticompetitiva, bem como determinou às interessadas que apresentassem ao Cade, sempre que requisitadas, todas as informações acerca do Protocolo de Crise e, ao final, um relatório circunstanciado com todas as medidas adotadas, as informações trocadas e os resultados obtidos.
O protocolo foi aprovado pelo Tribunal do Cade, apesar de não ter entrado em vigor pois o abastecimento se normalizou alguns dias após a aprovação.
Enfim, há luz no final do túnel. Mais do que isso, há precedente que deverá ser seguido pelo Cade se concorrentes ou empresas verticalmente relacionadas demandarem cooperação mais próxima. Resta ainda saber o nível de inovação que o Cade tenderá a adotar, podendo até mesmo sugerir algum tipo de procedimento mais formal – caso haja demanda – para aprovação de parcerias temporárias, ou ainda a aplicação de exceções de bloco via normativos e mediante a demonstração de alguns requisitos.
Bruno Drago sócio das áreas de Concorrência e Compliance do Demarest Advogados.
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