Os efeitos em escala global das mudanças climáticas em curso e da crise sanitária e econômica decorrente da pandemia de Covid-19 revelaram fissuras no atual modelo de desenvolvimento econômico, demonstrando a necessidade de governos e empresas reverem a forma de lidar com os finitos recursos naturais do planeta terra.
Tornou-se mais claro que a relação das pessoas, empresas e nações com o meio ambiente deve ser reavaliada e remodelada e, para atender a essa crescente preocupação, empresas, líderes e países têm voltado cada vez mais a sua atenção para as boas práticas de governança corporativa e responsabilidade socioambiental, focando a sua tomada de decisão em investimentos sustentáveis.
Neste contexto, depois de décadas sendo considerado e percebido como uma fonte de energia com grande potencial e, ao mesmo tempo, um canal disruptivo para o futuro (conforme indicado no Plano Nacional de Energia 2050), o hidrogênio se tornou atualmente um objetivo estratégico para governos e empresas em diferentes partes do globo.
Embora ainda existam desafios significativos do ponto de vista tecnológico e de mercado, o hidrogênio ganhou destaque em um cenário pós-pandemia de forma a promover a retomada da economia e acelerar a transição energética em diversos países.
Por conta disso, o Hydrogen Council, iniciativa que reúne CEOs de 92 empresas globais, estima que o hidrogênio verde responderá por cerca de 20% de toda a demanda de energia no mundo até 2050, criando um mercado avaliado em US$ 2,5 trilhões e 30 milhões de empregos diretos e indiretos em todo o mundo.
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Nesse cenário, o Brasil surge como um dos países líderes de um futuro mercado global de hidrogênio verde, dado o seu potencial para produzir grandes volumes com base em suas fontes de energia renovável e agrícola, sem prejuízo do uso do processo de gaseificação de biomassa e resíduos urbanos (biogás).
Além disso, a indústria brasileira tem a capacidade de representar um mercado interno relevante e o país parece ter ou ser capaz de desenvolver a tecnologia necessária, bem como a cadeia de suprimentos adequados para dar suporte ao novo setor.
Novas fronteiras para o uso do hidrogênio gerado no Brasil podem ser desenvolvidas nos segmentos de transporte, geração de eletricidade (inclusive para setores de difícil eletrificação), armazenamento de energia e processos industriais. Especificamente no que diz respeito ao armazenamento de energia, devido à sua versatilidade de uso, o hidrogênio é considerado um recurso capaz de promover o acoplamento setorial entre os mercados de combustível, elétrico, industrial e outros, com estudos defendendo que isso poderia não só contribuir para a potencialização da descarbonização da economia mundial, mas também promover uma dinâmica competitiva mais ampla e descentralizada por meio destes acoplamentos setoriais.
Em termos de fontes agrícolas, o hidrogênio verde poderia ser produzido, por exemplo, a partir do álcool da cana-de-açúcar, do biodiesel originado da soja e do girassol (entre outras plantas).
Além disso, o Brasil é um dos países com maior potencial para geração de energia renovável e tem um dos custos marginais de produção mais competitivos do mundo. Em 2019, a matriz elétrica do país contemplava 9% de sua geração por meio de energia eólica e 2% de energia solar fotovoltaica, sendo que esses percentuais devem aumentar para 16% e 8%, respectivamente, até 2029, de acordo com o Plano Decenal de Expansão Energética do Brasil 2019-2029, publicado pelo Ministério de Minas e Energia do Brasil (MME).
Comprovando referido destaque, desde fevereiro de 2021, foram assinados 6 memorandos de entendimento entre os Estados do Ceará, Pernambuco e Rio de Janeiro com diversas empresas multinacionais, com investimentos estimados em torno de US$ 22,2 bilhões, em projetos de produção de hidrogênio verde a partir de fontes renováveis.
Nas frentes institucional e regulatória, o governo brasileiro e outros atores relevantes têm se engajado em iniciativas e projetos de parcerias internacionais para acelerar a formalização da estratégia nacional de hidrogênio, o que resultou na inclusão do hidrogênio no Plano Nacional de Energia 2050, aprovado em dezembro de 2020 pelo MME.
Como resultado de tais iniciativas, a Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha de São Paulo e Rio de Janeiro (AHK) lançou a Aliança Brasil-Alemanha para o Hidrogênio Verde, que visa buscar empresas interessadas em fornecer energia ao país europeu por meio de chamadas de preço. As chamadas de preço serão intermediadas pela recém-criada Hydrogen Intermediary Company (HIC) e os contratos de fornecimento deverão prever parceria de, no mínimo, 10 anos.
Por outro lado, a Allianz Global Corporate & Specialty divulgou recentemente um relatório que expõe alguns riscos associados à produção de hidrogênio, tais como: risco de incêndio e explosão decorrente da mistura de hidrogênio e ar, além das dificuldades de identificação vazamentos sem detectores apropriados, haja vista o hidrogênio ser incolor e inodoro; eventual colapso do empreendimento e interrupção de negócios e fragilização do material (por exemplo, tubulação, recipientes ou componentes).
De acordo com o relatório, uma das maiores desvantagens são os custos associados ao transporte e armazenamento do hidrogênio, que requerem grandes investimentos e apoio dos governos locais.
Com o objetivo de endereçar os riscos, desafios e explorar o potencial da produção de hidrogênio verde, em agosto de 2021, o MME apresentou ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) as diretrizes do Programa Nacional do Hidrogênio do Brasil (PNH2), que, em apertada síntese, está estruturado com base nos seguintes eixos e diretrizes:
- Fortalecimento das bases científico-tecnológicas;
- Capacitação de recursos humanos;
- Planejamento energético;
- Arcabouço legal regulatório-normativo;
- Abertura e crescimento do mercado e competividade; e
- Cooperação internacional.
A implementação do PNH2 será coordenada por um comitê técnico a ser criado de acordo com as diretrizes da PNH2, o qual aprovará periodicamente o plano de trabalho nele previsto, podendo também submetê-lo à consulta pública.
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Devido à natureza da indústria de hidrogênio, que requer intensivos investimentos de capital, uma das principais preocupações para a consolidação da indústria de hidrogênio verde no Brasil está relacionado com a capacidade de obtenção de financiamentos necessários para estudos de desenvolvimento, treinamento humano e construção de projetos, cujo capital pode ser proveniente de financiamentos locais, internacionais e do mercado de capitais.
Nesse sentido, vale ressaltar que as diretrizes do PNH2 preveem que devem ser identificadas fontes e instrumentos de financiamento internacional, como, por exemplo, fundos verdes, agências de cooperação internacional, bancos multilaterais de desenvolvimento, fundos de investimento e outros instrumentos de financiamento.
Desta forma, um arcabouço legal e regulatório sólido e confiável é de extrema importância para atrair investimentos externos para este setor incipiente e, iniciativas legais como os projetos de lei nº 7.063/2017 e nº 5.387/2019 - atualmente em análise no Congresso Nacional, os quais claramente preveem a possibilidade de indexação em moeda estrangeira para contratos de venda em diferentes áreas de infraestrutura - certamente seriam benéficos, particularmente para aqueles projetos onde não haja hedge natural de exportação.
Neste contexto, há que se ressaltar que as partes interessadas podem ter sucesso em aumentar o espectro de possíveis credores e investidores estrangeiros, utilizando-se de abordagens criativas na estruturação de projetos locais de hidrogênio verde, de modo a abordar, do ponto de vista legal e contratual, certos riscos, como a flutuação cambial (incluindo potencialmente permitir a indexação em moeda estrangeira nos contratos de compra, independentemente de alteração na legislação pátria em vigor).
*Thiago Vallandro Flores e Rodrigo Murussi são, respectivamente, sócio-coordenador e associado da prática de financiamento de projetos, operações de crédito, direito bancário e mercado de capitais do Dias Carneiro Advogados.
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